A corrida no apagão – 15/10/2024 – No Corre

O apagão com que São Paulo sextou o último fim de semana ocupou, como não poderia deixar de ser, homepages, escaladas e primeiras páginas, além de ter sido o grande tema do primeiro debate do segundo turno entre os candidatos à prefeitura da metrópole, levado pela Band em horário pornográfico nesta segunda-feira (14).

Tanto Nunes como Boulos pediram o fim do contrato de concessão de energia da transnacional Enel, useira e vezeira em deixar a cidade por dias no escuro.

Não faltou luz na minha goma e meus prejuízos foram superficiais: uma sessão de cinema com minha filha interrompida pela metade, um trânsito à Delhi para voltar de Pinheiros na noite da ventania e, 48 horas depois, no domingo, uma pedalada insana sob total escuridão pela ciclovia da Pedroso de Morais.

Ali, com carros a cruzar meu caminho a cada 100 metros, cortesia de semáforos inermes, a cuíca poderia ter roncado.

Ricardo Nunes chamaria este texto de oportunista, elogio com que costuma brindar seus oponentes, mas o apagão deste outubro me reavivou um tipo de corrida que andei testando anos atrás, em situações mais ou menos controladas e que só se efetivam no escuro. Mas podem ser realizadas, curiosamente, sob luz solar.

Ou seja, prescindem das presepadas regulares da Enel.

Trata-se de correr com os olhos bem fechados. Talvez seja difícil convencer alguém a fazer isso, mas tentarei esgrimir abaixo alguns fiapos argumentativos.

São basicamente três razões. A primeira é instilar um toque de desafio à corrida. Sim, você poderia, sei lá, aumentar o pace subitamente, dar alguns tiros de tempos em tempos, mas há gente (presente!) que não tem muita paciência para treinos intervalados.

A ideia aqui é aumentar gradativamente a permanência com os olhos fechados. Faça uma contagem e a cada sessão procure subir a duração. O esforço é claramente mental, similar ao depreendido em sessões de meditação.

(E, paradoxalmente, idêntico àquele exercício de olhar para a chama da vela na ioga.)

A segunda razão decorre da primeira. Inserir desafios no cascalho ajuda a aumentar a longevidade da coisa toda. Se você precisa recorrer àquilo que chamo de Estratégia Madadayo para não abortar subitamente a corrida, no treino do apagão os jogos mentais atingem o estado da arte.

A terceira é muito útil nos dias em que você deixa em casa as gafas ou a bombeta, esquecimento que acomete particularmente quem sofre de males oftálmicos como este que vos tecla, cujo olho esquerdo é anfitrião de uma delegação folgazã do vírus da herpes desde o começo dos 1990.

Não é difícil visualizar que para realizar a corrida no apagão você precisa de ambiente adequado, do contrário pode se expor a uma queda que pode vir a ser fatal se esquecido também o capacete.

Portanto, como isto não é um desafio para pré-adolescentes do TikTok, só faça a corrida do apagão se encontrar pisos lisos, como aqueles de praias vazias e de pistas olímpicas –e olhe, ou melhor, não olhe lá.

E há a esteira. Eis aí uma boa utilidade, talvez a única, para ela.

Eu levei esse treino a Florianópolis e São Luís, e na capital do reggae, mesmo praticamente sozinho no contínuo de praias entre São Marcos e Olho D‘Água numa manhã nublada, adernei lá pelos 10km para um conjunto de pedras que por muito pouco não me valem outra cuíca a roncar.

A ideia disso tudo não surgiu do nada –a Enel ainda não estava operando a plenos pulmões–, mas de uma conversa que tive com o ultramaratonista e deficiente visual gaúcho Vladmi Virgílio, que já correu sozinho (sem guia) a singela extensão de 226km do litoral de seu estado em 47 horas seguidas.

Eu disse ao Vladmi ter tido a sensação de menor esforço ao correr “wide shut” na praia.

Poderiam ser outras razões, quem sabe a altitude –vivo a 800 acima do nível do mar, afinal–, mas Vladmi me disse que fazia sentido o que dizia porque, ao menos em ambiente competitivo, “não ver quem a gente ultrapassa ou é ultrapassado traz pensamentos bons, faz a corrida fluir de maneira relaxada”.

Quando é chamado a palestrar, Vladmi compartilha algo de sua vida sem a visão –ele a perdeu por volta dos 33 anos–, convidando sua audiência, se em ambientes adequados, a andar ou correr de olhos fechados.

Creio que mais do que prover um exercício de empatia, que pode ter efeitos fugazes ou duradouros a depender da sensibilidade do cabra, Vladmi concede aí a possibilidade sã de um desafio.

“Alguns já trotaram, uns foram bem rápidos. Mas todos se surpreendem.”


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *