O movimento evangélico, com suas muitas denominações, tem crescido significativamente no Brasil.
O debate público com frequência parece ficar atônito com a conversa inesperada que esses grupos propõem e seu impacto na política.
Juliano Spyer é antropólogo e colunista desta Folha. Ele passou cerca de dois anos, há uma década, morando em uma vila com perto de 20 mil pessoas, na vizinhança de Camaçari, a quase 100 km de Salvador. Um dos seus objetivos era entender como os pobres brasileiros utilizam tanto a rede social em comparação com outros países, apesar da baixa escolaridade.
Havia uma pequena igreja católica, em que cabiam perto de 60 fiéis, 9 terreiros de candomblé e cerca de 80 igrejas evangélicas.
A extensão da comunidade evangélica desconcertou Juliano. “Aquelas pessoas eram mais saudáveis e cuidavam mais umas das outras do que a minha perspectiva muito preconceituosa e muito limitada e com pouco conhecimento pressupunha.”
O termo que ele adota surpreende: “Milagre sociológico”. Ele conta essa experiência no livro “O Povo de Deus”.
Juliano relata casos comuns de violência doméstica. O marido que recebe o salário, para no bar a caminho de casa e se embriaga.
A mulher reclama do marido que chega bêbado e daí se seguem “horas de espancamento. Parece uma ópera. Começa baixinho”, daí seguem-se gritos numa área em que não se consegue chamar a polícia.
“As pessoas que entram na igreja evangélica param de beber.”
Juliano conta dos laços de comunidades, seus vínculos de solidariedade e um código de ética que valoriza o trabalho, o cuidado com a família e as pessoas do entorno.
Nas igrejas, as pessoas aprendiam o texto escrito. Numa comunidade sem banca de jornal, havia livraria para vender a Bíblia em diversos formatos: para quem tem dificuldade de ler, para crianças, para quem quer se tornar pastor…
Os cultos tratam de problema do cotidiano: como lidar com desemprego, um filho autista ou uma doença na família.
As denominações evangélicas, como os protestantes, usualmente compartilham um código de ética: o trabalho, o cuidado com a família, a empatia com seus pares da comunidade.
A religiosidade atrelada a um padrão de conduta no cotidiano resulta em histórias de famílias reconstruídas, de superação de dependência de drogas, da valorização do trabalho e da responsabilidade individual.
Francisco Costa, Angelo Marcoantonio e Rudi Rocha documentam, com microdados, o crescimento do movimento pentecostal a partir dos anos 1990, no artigo “Stop Suffering! Economic Downturns and Pentecostal Uupsurge”, publicado no Journal of the European Economic Association, em 2022.
O aumento significativo dos fiéis nos anos 1990 foi seguido apenas na década seguinte pelo crescimento do número de igrejas. Mais ainda, eles identificam que essa expansão foi mais forte nas regiões mais prejudicadas economicamente pela abertura comercial.
Esse trabalho vai ao encontro do estudo de Juliano. A religiosidade é parte de um entorno maior: a comunidade que se organiza para cuidar dos seus e que compartilha valores para a superação de carências dos serviços públicos e a construção de um cotidiano melhor.
As pesquisas sobre os evangélicos revelam uma complexidade de relação e valores bem maior do que o esperado pela visão convencional, assim como aspectos da dinâmica de crescimento desse grupo.
Raphael Corbi, da FEA/USP, em artigo com Fabio Miessi Sanches, “Tax Exemption and Struture of Religious Market”, aceito para publicação no American Economic Journal: Microeconomics, mostra que a isenção tributária para igrejas resultou em maior crescimento de templos evangélicos do que católicos e estuda as razões dessa evidência.
Outros trabalhos indicam uma complexa relação entre os fiéis e suas igrejas, em vez de subordinação integral. Um exemplo foi a dissonância entre líderes evangélicos e parte dos fiéis e o tema do aborto, como relatado por Juliano em colunas nesta Folha.
Em muitas comunidades, os fiéis participam atividade das decisões das suas igrejas, questionam regras, concorrem por cargos. Como observa Juliano, isso acaba, indiretamente, induzindo a participação na vida pública, por meio do desenvolvimento de mecanismos de comunicação e persuasão para construção de parcerias.
A ruptura iniciada por Lutero, e aprofundada por Calvino, enfatiza a relação direta das pessoas com a Bíblia, sem a necessidade da autoridade de uma igreja hierarquizada. Além disso, rejeita a possibilidade de as pessoas superarem a condenação do pecado original por meio dos seus atos.
A Graça é um atributo concedido por Deus, o que entra em conflito com o livre arbítrio. Contudo, é comum o argumento: “As pessoas que encontram Cristo devem andar como Cristo”.
Deborah Bizarria, colunista desta Folha, destaca que a visão evangélica vai na contramão do discurso progressista usual: “Como chegar para o crente médio… e dizer que o patrão te explora?”. A resposta muitas vezes seria: “Não, eu quero ser o patrão! Eu quero trabalhar tanto que vou conseguir ser o patrão… O patrão é legal e é da minha igreja”.
A multiplicidade de denominações, por vezes bem distintas na interpretação da religião e nas regras, resulta em comunidades ciosas de preservar suas crenças e aspectos do seu cotidiano.
Nos Estados Unidos, por exemplo, essa diversidade contribuiu para a separação entre o Estado e a religião. Cada comunidade quer cuidar das suas regras e valores, temerosas de um poder central que imponha valores que lhes sejam estranhos.
Existem problemas conhecidos em setores do movimento evangélico. Além disso, suas crenças e reação a políticas progressistas, como nos costumes, por vezes contrastam com os valores de parte relevante da sociedade.
O diálogo construtivo, contudo, pressupõe compreender a dinâmica complexa do seu cotidiano; seus valores, atitudes, motivações e preocupações.
Para conversar sobre o tema, entrevistei Juliano Spyer e Deborah Bizarria para o programa Lado B, disponível no site do Brazil Journal.
Uma pequena parte desta coluna reproduz trechos do texto que escrevi para o livro a ser lançado de Juliano Spyer, Guilherme Damasceno e Rafael Khalil, “Crentes: um Pequeno Manual sobre um Grande Fenômeno”.