Falta lastro ao raciocínio: os rankings de desempenho mostram arapucas privadas em profusão e escolas de ponta ao alcance exclusivo de mãos muito endinheiradas. A suposta “qualidade do ensino” é, no fim, uma desculpa para que parte da classe média se acomode no lugar em que gosta de estar: o de cliente. Os pais precisam de turno estendido? Ok. Querem marcar uma reunião para amanhã? Certo. A jardinagem da escola está com problemas? Me desculpe, vamos arrumar. Não estão de acordo com a abordagem de determinado conteúdo? Ah, sim, vamos conversar (para rir um pouco disso, veja a série cômica “O Professor”, no Disney+).
É o reino do “estou pagando” e, se não gostar de alguma coisa, busco outra escola. Nessa chantagem mediada pelo dinheiro, vem o delírio direitista de que as escolas privadas podem fazer o que quiserem — ou o que os pais mandarem. Não podem: a legislação diz que a educação é dever do Estado, que as escolas privadas podem existir, mas devem se submeter às normas gerais da educação nacional. Currículo, material didático, métodos de ensino devem ser fiscalizados e autorizados pelo Poder Público. O alerta é de Fernando Cássio, professor da USP, ao lembrar que “conteúdos ‘alternativos’ que negam os direitos humanos não têm lugar nas escolas”.
Também a esquerda “esclarecida” tira casquinha dessa lógica para adquirir superioridade moral em batalhas nas quais não tem tempo de se envolver. É o caso da educação antirracista e das bolsas para alunos negros em instituições de elite, desenhadas, ao menos em parte delas (há instituições com trabalhos muito consistentes), para simular uma democracia racial. Mesmo as supostas vantagens de convivência com a diferença — algo nativo da heterogeneidade da escola pública — se transformam em mercadoria. A diversidade também virou commodity.
A lógica da cidadania, por outro lado, é grátis. Como tudo que é coletivo, dá trabalho. A experiência de ter uma filha numa escola pública ao longo deste ano trouxe em primeira pessoa algum desses desafios — de horários mais rígidos, de convívio com pensamentos diferentes, da ampliação de conflitos (mas nem tantos assim), dos chamados para colaborar com a associação de pais e mestres (de certo constrangimento por não atendê-los), da espera para a resolução de problemas infraestruturais num ritmo mais lento (para além da burocracia, há razões para isso e dizem respeito aos necessários controles sobre recursos do orçamento público).
Não é simples mesmo, mas me pergunto de onde veio a ideia de que construir algo coletivamente e que cuidar do comum seria um passeio no parque. A classe média, em que me incluo, naturalizou o modo cliente como o único possível. Mesmo a intelectualizada, de “esquerda”, “socialmente consciente”. Em nome do conforto, abdica do que poderia ser uma atuação concreta na construção de um país menos desigual. Nas redes sociais, não abre mão de defender a Palestina, direitos LGBTQIA+, democracia etc. achando que está agindo politicamente quando, na prática, escolheu apagar (ou foi levado a apagar, não nego a força das circunstâncias) seu papel político.
O resultado é um círculo vicioso em que todos perdem: