Palmas para a moça do avião. A heroína que resistiu ao assédio para que cedesse o lugar a uma criança de três anos que resolveu viajar na janela. Não sei quem filmou a cena. Se foi a mãe, uma parente ou uma dessas justiceiras digitais que desconhece o direito básico, garantido pela Constituição, que é a privacidade. Celular virou arma de intimidação, muitos de nossos conflitos sociais são julgados no tribunal da internet, com pena de cancelamento sumário.
Não sei o final da história e, honestamente, não me interessa se a moça do avião vai meter um processo na querida que decidiu lacrar às custas de terceiros ou ganhar o próximo BBB. Há uma discussão mais importante: a postura dos pais do século 21. Falta-lhes limites. Gente birrenta que acha que o mundo é responsável por suas escolhas e que são especiais porque têm filhos. Me errem.
É muita gente que precisa interpretar melhor o provérbio fofo, que adora compartilhar, que diz “é preciso uma aldeia para educar uma criança”. Ditado bonito que romantiza o caos de criar um ser humano como se fosse uma tarefa comunitária, mas não é. Minha responsabilidade como parte da sociedade é garantir que o Estatuto da Criança e do Adolescentes seja respeitado, leis cumpridas, para que Ottos e Ninas cresçam em ambientes seguros e saudáveis. Isso não inclui ceder o lugar do avião ou passar a viagem tomando chute nas costas da poltrona, enquanto os pais do Enzo entediado dormem exaustos.
Não é minha obrigação fazer concessões para que o Luca não cresça com traumas causados pelo desejo não atendido de correr entre as cadeiras num restaurante que não deveria ser frequentado por crianças, apesar da insistência dos pais birrentos que acham que o mundo deveria se adequar à energia caótica do pequeno João.
Ao se tornarem pais, desenvolvem talento invejável de ignorar a tensão que cresce num ambiente coletivo, enquanto tomam seu Chardonay. No último domingo, a única mesa que não se emocionava com os pequenos que corriam entre os garçons com bandejas cheias de copos de choppe era a dos adultos esgotados. A tragédia estava posta. Os olhares do dono, dos funcionários e dos comensais se cruzavam com uma única questão: os pais não estão vendo? Não.
Era uma questão de tempo. Um dos mini-anjos vai passar correndo pelo garçom que equilibra 20 choppes na bandeja. Sem conseguir desviar, os copos perdem o apoio, o líquido amarelo entra em convulsão, algumas tulipas são arremessadas, uma cai na cabeça do monstrinho, abre um talho que espirra sangue para todos os lados, o garçom escorrega no chão todo melado de bebida, cai, bate a cabeça, morre, e o Gael chora, momento em que os pais tiram os olhos do pão de alho.
Isso aconteceu? Não sei, pedimos a conta, mas foi o roteiro que minha gastrite elaborou em 10 segundos. Eu só queria comer uma fraldinha com arroz com brócolis e tomar uma batida de coco, não quis incomodar os pais cansados, quando podem relaxar e deixar que a aldeia se ocupe dos seus filhos.
Pais birrentos criam filhos birrentos, despreparados para a vida, inseguros, amedrontados, sem as ferramentas básicas para entender limites, enfrentar frustrações. O episódio da moça do avião mostra que se os responsáveis não são capazes de educar, a sociedade não tem obrigação de aguentar chilique de Enzos e Catarinas.
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