Dentre as contradições do bolsonarismo, destaca-se seu discurso sobre o sistema de justiça e as forças de segurança. A incoerência nessa seara é temerária porque tais instituições são a ponta de lança do poder de polícia —o atributo concedido ao Estado para limitar e regular direitos individuais em prol da coletividade.
O poder de polícia atua em cada meandro de nossa vida por meio de leis, fiscalização e punições. Assim, envolve Legislativo, Executivo e Judiciário.
Mas há uma diferença. Enquanto a polícia administrativa age sobre bens, direitos e atividades, com função predominantemente fiscalizadora, a polícia judiciária recai sobre o indivíduo que teria cometido uma infração penal.
Assim, a Justiça e as forças de segurança representam a mais fina e perigosa ramificação do poder estatal, já que atingem o corpo do indivíduo, com restrição de liberdade e uso legítimo da violência que, no limite, podem causar mortes. E é por isso que devem ser alvo de escrutínio constante.
Parte da direita foca no Judiciário, notadamente no STF, com críticas corretas a abordagens censórias de tribunais sobre a liberdade de expressão e aos salários nababescos de seus membros. Contudo ameniza ou até mesmo elogia a brutalidade policial.
Ora, é um despautério se indignar quando o poder de polícia proíbe indivíduos de falar o que pensam e admirar quando esse mesmo poder espanca ou mata cidadãos a granel.
De janeiro a setembro, 474 pessoas foram mortas por PMs em serviço em São Paulo. No mesmo período do ano passado, foram 261 mortes —alta de 82%. Qualquer sociedade que pretenda ser civilizada deve rechaçar com veemência esses números.
A incoerência também grassa em parte da esquerda, que critica com razão o alto índice de letalidade policial do Brasil, mas não vê problema quando o STF achincalha a liberdade de expressão.
Não é por meio de disputas político-partidárias rasteiras que se deve avaliar a ação da polícia judiciária, mas pelos riscos de seus abusos ao Estado democrático de Direito. Os setores libertários da direita e da esquerda —sim, eles existem— já aprenderam a lição: o punho estatal que cala é o mesmo que prende e que pode matar.
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