As polêmicas fazem suas próprias voltas olímpicas. Com mais de uma semana de idade, a controvérsia da abertura dos Jogos de Paris ficou íntima de quase todo mundo: a mesa emoldurada por drag queens e uma DJ gorda foi encarada como paródia da “Última Ceia”, e a coisa saiu do controle.
Pouco importava se havia brotado da mesma encenação o que se alega ser um Dioniso pintado como um Smurf. A indignação pegou a tocha e saiu pelas redes, passou pelos jornais e fez seu ciclo de volta alimentando fake news em perfis de rede social como a da atriz Regina Duarte.
Ainda que inflamada por políticos, a revolta com o que foi entendido como uma gozação com a ceia em que Jesus reuniu seus 12 apóstolos ainda parecia ter algum lastro de legitimidade –pessoas questionavam o que entendiam como natureza jocosa da apresentação.
Como escreveu Silas Martí nesta Folha, “as intenções por trás de uma performance ou obra de arte não neutralizam as leituras que o público fará delas”. O trabalho artístico se presta à interpretação do espectador, e se o Dioniso azul chegou tarde demais para evidenciar um festim pagão, paciência.
Mas houve falhas na maneira de narrar a história, sim, além de ao menos um erro objetivo na Folha. O jornal afirmava que “a abertura da olimpíada fez ‘sátira da Última Ceia’, inclusive mentindo que o organizador se desculpou pela sátira”, nas palavras do leitor Eduardo Pires. Um título da Folha dava conta de que a organização das Olimpíadas havia pedido desculpas pela encenação “da Santa Ceia”. Ocorre que o comitê jamais tratou o espetáculo como paródia.
Dois dias depois da publicação, o jornal reconheceu o equívoco, mas limitou o reparo ao título. O texto continuava a afirmar que a cena “parodiava o quadro “A Última Ceia'”… “Por qual motivo a Folha está escandalosamente embarcando nessa mentira eu não sei, mas considero isso um fato gravíssimo que me faz ter dúvidas sobre a confiabilidade de um jornal que para mim sempre foi confiável”, afirmou Pires.
O rótulo de firula ou de polêmica “das redes” pode contribuir para o desdém ao consertar problemas nesse tipo de cobertura. Leva tempo, ainda, para a digestão de tudo o que vem com essas manifestações. A apuração costuma demorar mais do que as reações, e há consequências em ritmo de vida real, não de rede social.
Na sexta (2), já uma semana depois da cerimônia, a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, se pronunciou em defesa do diretor artístico e afirmou que a capital francesa sempre ficará ao lado dos artistas. Neste sábado, foi a vez de o presidente Emmanuel Macron tomar o lado do criador do espetáculo, que se tornou alvo de ameaças.
A França polarizada e enfronhada no momento pós-eleitoral apenas condensou muito do que se vive no resto do mundo, incluindo o Brasil. Questionou-se por que atacar o cristianismo, tido pelos próprios cristãos como “cachorro morto”, e não o islamismo, com referências aos ataques terroristas em solo francês e particularmente ao massacre no Charlie Hebdo.
Do outro lado, pessoas que saíam em defesa dos organizadores e artistas da cerimônia perguntavam: onde estão os “Je Suis Charlie”, aqueles que defendiam a liberdade de expressão? Só valia contra o ataque em nome de Maomé?
Quando finalmente o problema do banquete começava a arrefecer, outra onda de desinformação quebrava com uma nova polêmica. Era sobre a participação da pugilista argelina Imane Khelif e tinha resposta pronta do presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), que disse que não iria “participar de uma guerra cultural politicamente motivada”.
O problema é que o COI já estava em rota de colisão com a Associação Internacional de Boxe (IBA), comandada pela Rússia. No ano passado, essa associação banira Khelif e Lin Yu-ting (Taiwan), com o argumento de que elas não preenchiam critérios de gênero para lutar como e com mulheres.
No evento olímpico, porém, bastou um soco de Khelif na oponente italiana Angela Carini para dar fim à luta e início à proliferação de fake news sobre a argelina.
A Folha foi ágil para expor o problema em sua complexidade: “Caso da lutadora argelina vira guerra entre COI e associação e é apropriado pela polarização política”. Mas sites como G1, Metrópoles e a agência Aos Fatos foram mais diretos, com títulos que desmentiam postagens virais nas redes: “Atleta não mudou de sexo para disputar boxe feminino nas Olimpíadas”.
Esses são apenas dois casos estridentes de um evento com data para terminar. A polarização, por sua vez, não tem cerimônia de encerramento. Sua irrupção em temas e lugares inesperados, como mato no asfalto, é um desafio com o qual o jornalismo está aprendendo a lidar às cabeçadas.
Já se foi o tempo em que “fora do Twitter” essas polêmicas não existiam. Elas aprenderam a buscar as pontes para além das redes e influenciam comportamentos e reações (e votos). Seria arrogante ignorá-las, e ao jornalismo não cabe se abster do papel de explicar onde vivem e do que se alimentam esses monstrinhos.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.