A carta que Gleisi não escreveu – 13/12/2024 – Demétrio Magnoli

Prezado Roberto Campos Neto,

Na hora de sua saída do BC, escrevo-lhe —confidencialmente!— para agradecê-lo e desculpar-me. Agradeço pela articulação do voto unânime sobre a Selic, um gesto generoso que não era tua obrigação. Desculpo-me pelos insultos que proferi, seguindo o roteiro de uma encenação destinada ao consumo da base militante de esquerda.

Classifiquei como “irresponsável, insana e desastrosa” a elevação da Selic a 12,25%, atribuindo a você a decisão do Copom. Não é assim, claro. Todos os diretores indicados por Lula votaram a favor, inclusive Galípolo, o próximo presidente do BC. Sei bem que a elevação superior à expectativa do mercado protege Galípolo, oferecendo-lhe o álibi da consistência para promover os próximos, inevitáveis aumentos na Selic. O ônus político mais pesado recaiu nas tuas costas, aplainando a trilha da transição. Obrigado.

Fui além. Qualifiquei tua presidência como uma “trajetória nefasta responsável pela criminosa sabotagem da economia do país”, com o objetivo de estimular o “terrorismo fiscal”. Minhas declarações concluem a longa campanha de demonização conduzida pelo governo e pelo PT. No início, chegamos ao ponto, via jornalistas chapa-branca, de descrever o BC como núcleo de um “Estado profundo” que operaria a serviço dos interesses da Faria Lima. Sorry.

Esta mensagem pretende, no fundo, proteger minha reputação perante você. Não padeço de atrofia intelectual. Sei que a autonomia do BC está inscrita em lei, que o BC presta contas ao Congresso e cumpre a missão legal de perseguir a meta de inflação. Nada, portanto, de “Estado profundo”.

A Faria Lima, estou ciente, é uma avenida. Como tantos, uso a metáfora demagogicamente, para sugerir que o mercado seria um ente político centralizado e engajado no combate ao governo. Mas não se engane. Sei que, de fato, são incontáveis operadores concorrentes. Eles querem ganhar dinheiro, não fazer política.

Sei mais. As finanças são globalizadas. Se os agentes brasileiros (a “Faria Lima”) resolvessem comprar dólares com a intenção maléfica de sabotar o governo, os investidores estrangeiros comprariam ativos brasileiros baratos, aportando recursos e elevando a cotação do real. É ABC da economia.

Coloque-se, porém, na minha posição. Preciso nutrir minha base, que crê no nosso discurso econômico. Gritamos, desde sempre, “gasto é vida” —ou seja, que o motor do crescimento são as despesas públicas. Trata-se de um dogma: nossa carteira de identidade. É o que me move a, suavemente, criticar até mesmo o tímido pacote fiscal de Haddad. Por isso, preciso isentar o governo da responsabilidade pelas restrições fiscais, atribuindo-as à conspiração da “Faria Lima”.

Possuo 86 milhões de neurônios, não apenas o tico e o teco. Haddad existe para evitar a repetição da tragédia dilmista. Nós tolhemos a ação dele —mas só até certo ponto. Enfrentamos, ainda, a revolta dos fidalgos do Judiciário e do Congresso, entrincheirados nos seus castelos de privilégios. A vida é dura.

Sentirei sua falta. Não mais teremos um bode expiatório personificado. Quando a Selic ultrapassar a taxa mágica de 13,75%, não poderei insultar o companheiro Galípolo. Será só a “Faria Lima”, um alvo sem rosto. Saudades, já.

Att. Gleisi Hoffmann, pessoa privada.


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