A decisão moderna contra a natalidade implica catástrofe – 27/10/2024 – Luiz Felipe Pondé

“O jornalismo tem muito de redundância”, me dizia um querido colega desta Folha. Há que se repetir ideias, frases, argumentos. Como o leitor é efêmero, a repetição se faz necessária para que ele retenha o conteúdo.

Hoje vou voltar a duas questões que me parecem importantes. A primeira sendo a seguinte: nossa espécie é psicótica, sem possibilidade de cura, e dentro dessa psicose, a modernidade é um surto excepcional, até agora funcional.

A segunda, um corolário da primeira, sendo a seguinte: a decisão racional moderna contra a natalidade, um direito claro dos indivíduos contemporâneos, implica em escala demográfica uma catástrofe, que pode levar a espécie a uma lenta e silenciosa extinção, segundo Henry Gee, paleontólogo britânico, editor da revista Nature, e autor do livro “A (Very) Short History of Life on Earth”, que em português seria algo como uma muito breve história da vida na Terra.

A hipótese de que a espécie seja psicótica estruturalmente pode parecer estranha à primeira vista, mas se torna razoável se você abandonar a ideia, sintoma da psicose, de que estamos em progresso contínuo e de que um dia superaremos as misérias que nos assolam. Um elemento interessante desse sintoma específico é que ele, a noção de progresso em si, carrega a sombra da própria destruição.

Basta ver a hipótese de que o atual aquecimento global seja fruto do progresso industrial, que, por sua vez, é imprescindível para evitar qualquer catástrofe mundial econômica, social, política e outra que você queira incluir na lista. O sintoma moderno da psicose tornou-se estritamente necessário para a manutenção, temporária, da vida humana.

A imperfeição intrínseca ao comportamento da espécie implica sua inviabilidade a longo prazo. Afora os afoitos, infantis, e os profissionais de marketing, qualquer um pode perceber essa imperfeição à luz do dia, e mesmo sob as sombras da noite.

Essa psicose pode ser vista em sintomas ridículos e menos dramáticos. Todos os shows de ridículo de gente que supostamente carregariam em si capacidades para não agir como imbecis nas redes sociais, mas o fazem por dinheiro, status e engajamento.

Este é um sintoma prosaico.

O corolário dessa primeira hipótese apontado acima é visível sob os olhos precisos da estatística e da matemática: a espécie, se tivesse alguma consciência de si, de fato, acerca das consequências a longo prazo dos seus atos, saberia que a queda sustentável da natalidade por um longo período implica a tese do paleontólogo Henry Gee aqui citada.

Na totalidade do tempo pré-histórico, e na imensa maior parte mesmo do tempo histórico —isto é, na sua longa duração—, no qual evoluímos, nunca, em momento algum, dispomos de tamanha capacidade para escapar da “camisa de força” que o ambiente sempre impôs sobre nós. Nossa capacidade de impactar nosso futuro nunca chegou nem perto do que temos hoje de recursos para “realizar nossos desejos”.

Suspeito que o desejo é, justamente, o elemento entrópico na espécie. Schopenhauer, no século 19, tinha razão, com sua vontade irracional como essência absoluta da realidade. Sendo a razão, submetida ao desejo nas mais variadas formas, não vejo como conter o desejo dos nossos adultos emancipados, “donos” do seu destino, no que tange à recente descoberta de que filhos são um ônus e não um bônus.

Esses indivíduos, possuidores dos seus direitos de escolha dentro do espectro ético e político das democracias liberais —e mesmo fora delas, como na Rússia ou na China— não vão mudar de ideia só porque alguém aponta esse vinculo entre recusa da natalidade e futuro da espécie.

O próprio fato que o reconhecimento desse fenômeno gera reações inconsistentes do tipo “culpa das empresas que não valorizam a maternidade”, “culpa do patriarcado que pesa sobre a mulher”, “isso nada mais é do que argumento de reacionários” indica o limite cognitivo no entendimento do problema.

Todos esses exemplos de argumento citados no parágrafo anterior podem ser verdadeiros, mas não são a causa eficiente da queda da natalidade. A razão é um misto das opções sociais que mulheres e homens têm hoje —quando não tinham no passado— e a conclusão racional e calculada de que quase ninguém quer ter dor de cabeça com investimentos de longo alcance e com riscos de contencioso jurídico forte.

Não se trata de argumento religioso, mas demográfico.

A recusa da reprodução em termos evolucionários é um ato suicida a longo prazo. Entretanto, ninguém é obrigado a ter filhos, afinal. Essa é a entropia. Negar esse fato é “negacionismo”, uma palavrinha da moda, não?


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