Uma frase apócrifa, erroneamente atribuída a Lênin, pode ser aplicada aos tempos que correm: “Há décadas em que nada acontece, e há semanas em que décadas acontecem.”
Macron dissolveu a Assembleia Nacional em 9 de junho para revigorar seu poder. Um mês depois, a ultradireita periga eleger o primeiro-ministro. Com ou sem sua vitória no domingo, a França está fadada a um grande tumulto.
Na última quarta-feira, Biden entrou confiante no debate eleitoral. Afinal, foram ele e os democratas que o propuseram aos republicanos. Saiu da refrega de maca e sua campanha entrou em coma.
Trump ganhou pontos preciosos nas pesquisas de opinião, aplainou a trilha para tomar o poder. Indagado duas vezes no debate, deixou evidente que não aceitará uma eventual derrota nas urnas. Como no 8 de janeiro de 2021, mobilizará seus fanáticos e tentará um golpe.
Na Casa Branca, o protofascista terá os poderes incontrastáveis que lhe foram concedidos pela Corte Suprema dias depois do haraquiri de Biden. A saída —digamos otimista— para a crise é ter as mãos trêmulas de um vovozinho senil em torno do botão que detona a hecatombe atômica.
As panes em dois pilares da ordem internacional, Washington e Paris, obliterou o que era o acontecimento central de nosso tempo, o massacre de 35 mil palestinos em Gaza.
Com o beneplácito dos grandes deste mundo, Israel mata metodicamente crianças e mulheres; deixa milhares sem teto nem comida; explode hospitais e escolas. Em nome de quê? De um apartheid mais cruel que o da África do Sul até 1994.
A chacina em Gaza, por sua vez, pôs em segundo plano a carnificina cujo desenlace definirá o destino da Europa por anos: a invasão da Ucrânia. Putin, à la Netanyahu, trata como segredo de Estado o número de suas vítimas.
Porém, estimativas independentes atestam que, entre ucranianos e russos, civis e soldados, lá morreram cerca de 500 mil até agora. É meio milhão de pessoas como você, sua família, amigos, colegas.
Por fim, não passa mês sem que cataclismas naturais se abatam em algum canto do globo. São enxurradas no Rio Grande do Sul, ondas letais de calor em Meca e Nova Déli, furacões no Caribe, incêndios no Pantanal. Impávida, a crise climática se alastra.
Não é de hoje que certas épocas imaginam estar no limiar do fim dos tempos. A própria Bíblia se encerra com os quatro cavaleiros escatológicos do apocalipse —peste, fome, guerra e morte. Em termos contemporâneos, são Covid, Gaza, Ucrânia e o risco de uma terceira guerra mundial.
A sobreposição de desgraças, até há pouco impensáveis, mostra que a experiência do tempo se acelerou. Realmente, vivemos semanas que equivalem a décadas. E as notícias vão sempre no sentido da deterioração da humanidade e da Terra. Como se chegou a isso?
Dois dados estão presentes em todas as respostas à questão: a desigualdade e a superexploração. Segundo a Oxfam, a fortuna dos cinco homens mais ricos do planeta dobrou desde 2020, ao passo que as cinco bilhões de pessoas mais pobres tiveram sua renda reduzida.
A miséria crescente provoca êxodos emigratórios —da África e do Oriente Médio para a Europa; da América Latina para a do Norte. A disputa encarniçada por empregos explica os votos no chauvinismo de Trump e do Reagrupamento Nacional, o partido da ultradireita francesa.
Como não há trabalho para todos, há jovens que vão para a bandidagem. Governos fascistizantes reforçam a polícia, defendem o armamento dos “cidadãos de bem” e discriminam os imigrantes racialmente. A direita boçal avança e a esquerda trololó tergiversa.
A desigualdade aguda se apoia num sistema econômico que, a pretexto de incitar o progresso, depreda a natureza. No Brasil, por exemplo, acha-se vital a exploração do petróleo, e que se dane a foz do rio Amazonas. No plano global, igualmente, prefere-se destruir a enfrentar a crise climática.
Que mundo surgirá dessas tensões? O historiador Cristopher Clark arrisca um prognóstico em “Revolutionary Spring”, um estudo de 900 páginas da vaga revolucionária de 1848. Iniciada na Sicília, ela logo conflagrou a Europa —em semanas que equivaleram a décadas de lero-lero.
Ao comparar o hoje ao ontem, Clark, liberal de boa cepa, diz: “Se uma revolução vem vindo (e parece que estamos bem longe de uma solução não revolucionária para a ‘policrise’ que enfrentamos), ela poderá ser como a de 1848 —mal planejada, dispersa, acidentada e cheia de contradições.”
Dias de ira voraz virão, quem viver verá.
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