“É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse ‘R’ no lugar do ‘L’, nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o L inexiste. Afinal, quem que é o ignorante?”, perguntou Lélia Gonzalez em intervenção na Anpocs em 1984, publicada na Revista Ciências Sociais hoje sob o título “Racismo e sexismo na cultura brasileira”.
É neste texto que Lélia nos apresenta a língua falada no Brasil: o pretuguês.
Sem negar a presença de línguas indígenas no português do Brasil, a etnolinguista Yeda Pessoa de Castro nos mostra, em trabalhos publicados desde a década de 1980, o peso de línguas africanas por aqui, tanto no léxico como na fonologia.
Bunda, minhoca, caçula, samba, moqueca, canjica, caxumba, dengue, jiló, marimbondo, cochilo, muamba, sunga, canga, cafofo, caçula, babá, capenga, caçamba, tipóia, moringa, xodó, dengo, cafuné, xingamento, sacana, lelé, quitanda, bufunfa, cachaça.
Palavras do tronco linguístico banto, de um universo de mil e quinhentas registradas por ela, advindas de três línguas litorâneas: o quicongo, falado na República Democrática do Congo e norte de Angola, do quimbundo e do umbundo, de Angola.
Também na fonologia, Yeda Pessoas de Castro registra a pronúncia da vogal “I”, como em ritmo, por exemplo (que falamos ri.ti.mo), advogado, pneu, na diferenciação de como se fala em Portugal.
E na sintaxe, em que tantas vezes o plural fica indicado no artigo ou pronome anterior ao substantivo, sem necessidade, para a compreensão do plural, do s ao final da palavra (os menino, essas cadeira etc). Também são marcas banto no nosso pretuguês o uso duplo da negação, “não quero não”; o uso da preposição “em” com verbos de movimento “fui na escola”.
Até o século 19, mais de cinco milhões de pessoas foram arrancadas do continente africano para serem escravizadas no Brasil, cerca de um milhão foi atirada ao mar. Com as mais de quatro milhões que chegaram, em sua maioria banto, estavam seus saberes, memórias e línguas.
Torna-se curioso, portanto, o debate, em pleno 2024, sobre a não substituição da língua portuguesa por uma brasileira. Já aconteceu, meus caros. O epistemicídio, tão bem apresentado por Sueli Carneiro em seu “Dispositivo de Racialidade”, ao negar nosso conhecimento e também as condições para que possamos produzir conhecimento, tem sido denunciado há décadas, e também tem sido enfrentado em diferentes campos. Os apagamentos não pegam bem.
Para quem achar difícil aceitar a realidade, recomendo a nova edição do livro “O Kit de Sobrevivência do Descobridor Português no Mundo Anticolonial”, da autora portuguesa e professora da UCLA ( Universidade da Califórnia em Los Angeles) –portanto mais confiável a alguns– Patrícia Lino.
Publicado pelo Círculo de Poemas, da Editora Fósforo, o livro inventaria um conjunto de objetos e instruções perspicazes, muito bem escritas: há o diploma da branquitude, o frasquinho do mar português, bustos dói-dói. Um espelho que pode ajudar a se situar. E para quem não aguenta mais a gritaria do colonialismo tentando sobreviver, o humor de Patrícia é uma vingança prazerosa.
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