‘A Substância’:Filme sintetiza pressão estética traiçoeira – 11/10/2024 – Mariliz Pereira Jorge

Ela virou um monstro. Era tão bonita, virou um monstro. O que ela fez no rosto? Virou um monstro. A síntese do filme “A Substância” é o que tem acontecido na realidade: as mulheres investem tanto em suas “melhores versões” que se transformam em monstros.

O filme protagonizado por Demi Moore, para mim, foi todo construído para mostrar o caminho de loucura que muitas de nós percorremos para encontrar o que acreditamos ser apenas a nossa melhor versão. Nos perdermos de nós mesmas, embaixo de camadas de ácido hialurônico, injeções de toxina botulínica, bocas deformadas, terapias caras e perigosas, cirurgias plásticas, harmonizações que têm o efeito oposto.

A própria Demi Moore foi vítima de si mesma há alguns anos quando surgiu com o rosto desfigurado pelo excesso de procedimentos. Há quem conteste sua escolha para o papel de Elisabeth Sparkle por ela ter se rendido à pressão estética, mas ela, ao que parece, percebeu a tempo que suas escolhas a levavam a se transformar numa caricatura de si, no monstro que engole a sua personagem.

O filme da diretora Coralie Fargeat é genial por ser uma hipérbole sobre a pressão estética que assombra as mulheres. Parece trash dos anos 1980, estereotipado, sem compromisso com a realidade, ao mesmo tempo que traduz o zeitgeist. Nada tem explicação, ao mesmo tempo em que se aproveita de todos os estereótipos. A mulher famosa, que não tem relações pessoais, o executivo poderoso e repugnante, a calçada da fama numa Los Angeles em que neva, a habilidade de carpinteira de Sue, a versão jovem de Elisabeth, interpretada por Margaret Qualley. Mas tudo isso é secundário porque serve à narrativa.

Há quem reclame do exagero de nus, o que reforçaria a objetificação da mulher, de violência, de sangue, de ficção, mas o excesso é exatamente a linguagem que mostra essa hiper-realidade. Vi quem classificasse como body horror, subgênero de filme que explora mutilações e mutações, aqui sinalizado primeiramente pelo envelhecimento. Faz todo sentido num mundo em que envelhecer é o terror corporal.

“A Substância” é daqueles filmes que você ama ou odeia. Vi gente sair no meio da exibição, horrorizados com a sanguinolência, enquanto para outros era repulsivo ou nonsense. Deixei a sala de cinema atordoada, afundada no sentimento de tristeza que me abateu durante o filme. É evidente a falta de autoestima de Elisabeth, a cobrança da sociedade pela eterna juventude, como as mulheres colocam sua segurança e vida em risco, capazes de se submeter a qualquer coisa que remova as marcas que os anos deixaram em seu DNA.

Um ponto me tocou em especial. A ausência de um olhar amoroso de Sue para o seu eu mais velho. “Sua velha”, ela diz. A incapacidade que nós, quando jovens, temos de vislumbrar o futuro, de tratá-lo como se ele jamais fosse chegar. O desprezo pelo envelhecimento, pela sabedoria, pela experiência. Tratamos os mais velhos como descartáveis, como se os velhos fossem sempre os outros. Mas a personagem de “A Substância” mostra que fazemos isso com nós mesmos.

Aos 30, tinha horror de me pensar com 50. Ao chegar nessa idade, percebo que o preconceito ainda persiste quando imagino o que será daqui a 10 ou 20 anos. O filme me fez refletir sobre esses sentimentos. Talvez se, desde já, eu começar a tratar com afeto, agradecimento e admiração a pessoa que serei lá na frente, consiga me manter firme e não sucumba à pressão de tentar ser algo que não sou mais.


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