O acordo apalavrado entre as cúpulas do Judiciário, do Legislativo e do Executivo em torno das emendas parlamentares foi saudado pelo presidente Lula como um sinal de que o “Brasil voltou à normalidade”. Difícil prever se a conciliação irá interromper a batalha entre Poderes em que ingressamos na última década. Se alguma normalidade advier dessa conciliação, será muita distinta daquela em que vivíamos até 2013.
O arranjo constitucional brasileiro era marcado por uma relação de dominância do Executivo sobre o Legislativo, que ficou conhecido como “presidencialismo de coalizão”. O presidente eleito, dotado de uma série de prerrogativas legislativas e orçamentárias, montava uma coalizão partidária para governar, que competia na próxima eleição.
Os sucessivos escândalos de corrupção política, associados a uma perda de capacidade de construir consensos sobre questões relevantes, sobrecarregaram o sistema de Justiça e levaram o Supremo assumir um papel de dominância em muitas circunstâncias.
A reação à “supremocracia” veio primeiro dos partidos políticos depois do bolsonarismo. O alinhamento da Lava Jato com Bolsonaro e a capitulação da Procuradoria-Geral da República levaram o Supremo a recuar no combate a corrupção e a reestabelecer o diálogo com a classe política.
Paralelamente, o Congresso se beneficiou da fragilidade dos governos Dilma, Temer e Bolsonaro, para extrair prerrogativas do Executivo. Foi se assenhorando de parcelas cada vez maiores do orçamento. Também aproveitou para ampliar o financiamento público dos partidos. Com emendas vinculantes e dinheiro no bolso, os parlamentares assumiram a posição de dominância, ao menos em relação ao Executivo.
O fato de a democracia constitucional brasileira ter sobrevivido às diversas crises que se sucederam a partir de 2013, e, sobretudo, aos ataques da extrema direita, não significa, entretanto, que o sistema constitucional tenha saído ileso da refrega.
Crises políticas prenunciam transformações no arranjo constitucional. O resultado das batalhas institucionais é que alguns ampliam suas prerrogativas e outros perdem. Algumas dessas transformações vêm acompanhadas de alterações formais da letra da Constituição, entrincheirando vitórias, como a transferência para o Legislativo do controle sobre parcelas do Orçamento. Outras decorrem de mudanças na postura de cortes constitucionais, como as que vêm fragilizando os direitos dos trabalhadores e dos povos indígenas, sem qualquer alteração do texto constitucional.
A nova normalidade chancelada pela reunião entre os Poderes aponta para preocupantes mudanças no arranjo constitucional. O Legislativo consolida avanços sobre funções de governo, sem assumir as responsabilidades decorrentes dessas funções. Surge, assim, uma espécie de regime de coabitação no poder, sem que o Parlamento esteja submetido a um sistema de responsabilização política, como nos regimes parlamentaristas.
O espaço do Executivo ainda não está claro. Mas num país carente de políticas públicas estruturadas e consistentes, em campos fundamentais como educação, saúde, infraestrutura ou segurança, é muito preocupante vislumbrar a subordinação do governo à fragmentada alocação de recursos determinadas pelos parlamentares.
O Supremo, por sua vez, vem dando sinais de que pretende assumir uma função mais mediadora e conciliadora, em detrimento de sua custosa, mas indispensável, tarefa de guarda da Constituição. Como justificar democraticamente essa função que o Supremo vem se autoatribuindo?
Reencontrar a normalidade parece ser uma boa coisa. O risco, porém, é normalizarmos mais os vícios do que as virtudes de nosso arranjo constitucional, que já apresentava problemas.
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