‘Ainda Estou Aqui’ faz de drama familiar o retrato doloroso do país

Foi essa a condição em que se encontrou Eunice Paiva após o desaparecimento de seu marido. Sozinha ao lado de cinco filhos, contando com o apoio de amigos em uma sociedade que muitas vezes prefere olhar para o outro lado, ela precisou se reinventar para manter a engrenagem da vida funcionando. Tamanha resiliência, depois de um ato de violência tão perverso, foi o tema do livro autobiográfico lançado em 2015 pelo filho do casal, o escritor Marcelo Rubens Paiva.

Trabalhando com o roteiro estelar de Murilo Hauser e Heitor Lorega, Walter Salles recupera uma história que espelha o Brasil do período. A casa dos Paiva, sempre de portas abertas, era um ponto de luz em meio às trevas da ditadura. O casal recebia amigos para discutir música, para celebrar a vida, para refletir sobre os rumos da política no país. Rubens (papel estelar de Selton Mello), após retornar de um período fora do país, ajudava os brasileiros exilados pelo regime repassando cartas ao seus familiares. O perigo sempre esteve à espreita.

O foco narrativo aqui, contudo, é Eunice. “Ainda Estou Aqui” coloca nela não só a ponta de esperança que conduzia os brasileiros apequenados pelo regime, mas também a imensa força para não sucumbir ao desespero e encontrar, ante uma tragédia silenciosa, o impulso para continuar lutando. Os militares, afinal, ficaram calados por décadas acerca do destino de Rubens, mantendo uma mentira insustentável. Eunice, por sua vez, nunca desistiu de elucidar o destino do marido.

Fernanda Torres em 'Ainda Estou Aqui'
Fernanda Torres em ‘Ainda Estou Aqui’ Imagem: Sony

Essa complexidade é traduzida em uma interpretação não menos que espetacular de Fernanda Torres. A atriz surge com um trabalho contido, de emoções encapsuladas, retratando assim a grandeza de Eunice ao se tornar a rocha na qual sua família iria se reconstruir. É um trabalho de pequenos gestos, de decisões doloridas, em que a luz do amor de uma família trafega pelas sombras —reais e abstratas— para se refazer.

De certa forma, a tragédia da família Paiva representa não só o abismo do Brasil durante a ditadura, mas também sua tenacidade ao se reerguer. O nefasto regime militar foi finalmente abolido em março de 1985, quando um civil assumiu novamente a presidência. Nossa democracia é frágil, recentemente ameaçada por um grupo político sem a menor vergonha em louvar a ditadura —e sedento por um golpe capaz de restaurá-la.

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