Abandonai toda a esperança, vós que entrais (limpando os pés no capacho de “lar, doce lar”). Ajoelhada em penitência diante dos bibelôs que fundamentam minha devoção ao que há de mais duvidoso no gosto decorativo da tradicional família brasileira —entre eles palhaços chorando, jarras de abacaxi e galinhos do tempo—, confesso: já fraquejei em minha fé no kitsch.
Sendo assim, ofereço este laico e sincero testemunho sobre uma epifania tardia que se deu em minha vida. Nada a ver com a levitação de São José de Cupertino, o êxtase de Santa Teresa ou a liquefação do sangue de São Januário, mas o desbotamento de Santa Fabíola.
Nascida em Roma no século 4, é padroeira dos divorciados, das viúvas, dos infelizes no casamento, e muito ironicamente esteve entronada por mais de 30 anos num lugar de feliz peregrinação doméstica —a cabeceira da cama de tia Zuma e tio Wando.
Pintada no século 19 pelo francês Jean-Jacques Henner, ficava às vistas de quem entrava no quarto, fosse para alcaguetar primos, implorar por picolé antes do almoço ou apenas se aboletar de sapatos na colcha.
De perfil, alheia a picuinhas tão pagãs, me era mais enigmática do que a Mona Lisa. Seu véu ocultando-lhe os cabelos, mas não uma nesga de franjinha, aparada por anjos à imagem e semelhança da Solange de “Vale Tudo” —e não pela tesoura de unha de titia.
Tinha uma aura etérea sobretudo à noite, quando seu rosto emanava luz própria, mais pertencente ao mundo dos céus do que da terra. Num tom divino, quase alienígena de… Verde Varginha.
Mantida nas trevas da ignorância por décadas, precisei transpor outro altar da cafonália —o consultório do Dr. Valcour, dentista da família— para corar de vergonha diante da verdade ali também emoldurada. O retrato jamais havia sido verde samambaia: o sol da janela dos meus tios é que tinha providenciado a transfiguração.
Agora, o segundo segredo de Fabíola, revelado por tio Wando numa anunciação tão secular quanto trivial, enquanto dividíamos uma geleia de mocotó. Como o original de Henner foi perdido e só restam infinitas reproduções em cômodos por todo o planeta, a santa que tínhamos —verde Fusca 85, verde piscina de plástico no quintal, verde Hulk na TV depois da escola— era única. “Uma relíquia só nossa”, sacramentou. Ao que digo, até hoje, “amém”.
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