Os olhos de Fernanda Torres estão na iminência de transbordar. Seu olhar traz uma urgência de compreender o que vê. Não deságua, não termina, não conclui. Não compreende.
A iminência da tragédia é mais inquietante do que qualquer desfecho. Os olhos de Fernanda Torres transmitem uma sensação de vertigem que dilui o passado e o futuro. Miram o vazio e, por serem cinema, se conectam com nossos olhares à deriva.
Mas de quem são os olhos de Fernanda Torres? Uma resposta mais objetiva seria: são de Eunice Paiva. Uma mulher honesta que viu sua vida ser roubada do jeito silencioso e arbitrário que caracteriza as maiores brutalidades. O corpo colossal, burocrático e emaranhado do Estado ocupou sua sala, almoçou, jogou totó com seus filhos. Sem perguntas nem respostas, furtou o que havia de mais precioso e pendurou um sorriso cínico atrás da porta.
Os olhos de Eunice continham um dique que os impediu de transbordar. Oferecer comida aos algozes de sua tragédia, dentro de sua casa, seria uma pequena vitória. Uma carreira sólida, construída com a mesma dignidade, delicadeza e solidariedade seria uma vitória maiúscula.
Os olhos de Fernanda Torres, que são de Eunice, também são de Marcelo Rubens Paiva. Um olhar que enxergou a grandiosidade de uma resistência que nunca ressoou numa escala grandiloquente.
Também são os olhos de Walter Salles, que fez caber tanta coisa num olhar. Estão ali os sonhos desfeitos de uma geração que quis transformar o mundo num lugar onde as pessoas enxergassem as outras. Está ali a vitalidade castrada de um país que tinha uma palavra nova para dar. A delicadeza perdida. As batalhas perdidas. O olhar da criança para a casa vazia.
Os olhos de Fernanda Torres também são os olhos das mulheres honradas que perderam (e perdem) maridos e filhos pela brutalidade do Estado.
Walter, Daniela, Fernandas, Eunice, Marcelo, Selton, Rubens, os roteiristas Murilo e Heitor mostram que a dignidade, delicadeza e solidariedade ainda estão aqui. E que é possível enxergar um futuro pelos olhos de Eunice. A casa vazia foi reconstruída.
PS.: Tudo é tão acertado no filme que reverbero aqui a brilhante ideia de colocar Erasmo Carlos para ressoar na grandiloquência de Caetano, Gil, Chico, Roberto, Milton.
“Eu cheguei de muito longe/ E a viagem foi tão longa/ E na minha caminhada/ Obstáculos na estrada, mas enfim aqui estou/ Mas estou envergonhado/ Com as coisas que eu vi/ Mas não vou ficar calado/ No conforto acomodado como tantos por aí/ É preciso dar um jeito, meu amigo.”
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