O Ádige nasce no norte da Itália, atravessa o Trentino e o Vêneto, lambe a basílica de San Zeno, em Verona, e se joga no Adriático. Com 410 quilômetros, é o segundo maior rio italiano, atrás só do Pó. Em compensação, gabam-se os tiroleses, suas águas são megarrápidas.
O Alto Ádige é uma das áreas mais ricas do mundo, compete com a grande Londres. Os sinais exteriores de riqueza são públicos e não privados. Enquanto os trens de primeira, o asseio urbano e o zelo com a natureza são evidentes, não se vê nem sombra de jatinhos, guarda-costas.
O fato de o rio cruzar uma região abastada explica a pujança da imprensa lá, seja cosmopolita ou provinciana. Explica também a excentricidade extrema dos nativos, que preferem jornais feitos no velho e bom papel.
Com isso, as bancas oferecem todo santo dia Frankfurter Allgemeine, Le Monde e New York Times, fora os jornais de Roma. Mas todos eles, somados, vendem menos que Il Nuovo Trentino ou o Neue Südtiroler Tageszeitung —este para os de língua alemã.
A eleição, ascensão e posse de Trump provocaram uma epidemia de palpites jornalísticos do Oiapoque ao Ádige. Não houve Cristo, nas hostes das classes comentadoras, que não tecesse o que chamam de opinião abalizada. Como os profetas de cartuns, eles carregavam a placa dizendo “o fim do mundo está próximo”.
A imprensa trentina, antenada, aderiu ao surto de conjecturas. Quem saiu na frente ali foi L’Adige, o maior jornal do recanto que os austríacos, tinhosos, chamam de Südtirol, Tirol do Sul. Ele vende 22 mil exemplares diariamente, a maioria em Trento, uma enormidade para a cidade de 118 mil habitantes.
No dia seguinte à eleição, lá estava, na primeira página, abaixo da manchete estrepitosa —”Trump: pararei as guerras”— o discreto apêndice: “A análise do professor Fabbrini”, com a mimosa fotinho do dito cujo, que, fingindo ter sido pego em flagrante, segurava o queixo com ar inteligente.
O que o mestre achou do triunfo de Trump não importa um cazzo. Mas, caso você esteja mesmo interessada, ele falou que a democracia de pesos e contrapesos está decadente e o “populismo carismático” venceu, apesar de “não ter propostas”. Ou seja, não disse lé com cré.
Mas eis aqui algo pertinente que foi dito sobre o Grande Irmão do Norte: “Em nenhum lugar os políticos constituem um setor mais separado e poderoso que os Estados Unidos. Os dois partidos que se alternam no poder são controlados por gente que faz da política um negócio”.
Acabou assim o raciocínio: “Duas grandes gangues de especuladores políticos se apossam intercaladamente do Estado e o exploram pelos meios mais corruptos e para os fins mais corruptos”.
Embora gangues soe exagerado, imagine Musk, Steve Banon e Trump confabulando na calada da noite. Ou Biden e o filho Hunter falando da anistia a bandidos e negócios malcheirosos na Ucrânia. Porém, a gangsterização da política americana já existia em 1891 —foi o que Engels disse no posfácio de “A Guerra Civil na França”, de Marx.
Trump foi eleito, reeleito e em novembro obteve a maioria do voto popular —incluídos aí trabalhadores, classe média, jovens, mulheres, negros, latinos, quem se queira. De 2020 para 2024, anos de satanização, obteve mais 3 milhões de votos. Não é um ponto fora da curva.
Os votos não fazem de Trump uma fada. Ele incentivou uma milícia armada, os Proud Boys, a dar um golpe. Não conseguiu, livrou-se da Justiça e prometeu anistiar os sediciosos. O republicano e sua tropa de orgulhosos não tentaram aniquilar as organizações de trabalhadores —o que seria aderir ao objetivo histórico do fascismo. Mas que têm vocação para SS, têm.
Biden, por sua vez, deixou que a inflação prosperasse, imigrantes ilegais cruzassem a fronteira com o México, o direito dos trans se sobrepusesse ao dos trabalhadores e, para completar, patrocinou o massacre do povo palestino por Israel —uma falência moral que não se via desde a Guerra do Vietnã.
O que o mundo, Trump e o professor Fabbrini tem à frente é terrível: catástrofes ambientais, guerras na Europa, Oriente Médio, África, vagas migratórias e, disseminada, a descrença crescente na civilização burguesa —para a qual não há alternativa à vista.
Talvez seja mesmo o caso de sair com a placa dizendo que o apocalipse está próximo. Ou então repetir, melancolicamente, o dito de Raymond Williams, socialista galês: “Ser radical é fazer com que a esperança seja possível, em vez tornar o desespero convincente”.
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