Domingueira: dia de fazer besteira – 24/10/2024 – Tati Bernardi

Meu pai tem 83 anos e há pelo menos uma década não precisa nem quer votar. Essa é uma das grandes alegrias da minha vida —a cidade e o país agradecem.

Ele é um homem de extrema direita. E não foi o algoritmo macabro que o levou a isso: foi ele mesmo quem levou seu algoritmo macabro a levá-lo a isso. Mas como pode um senhorzinho gente boa, amigo dos bichinhos e de um casal de lésbicas, ser assim? Meu pai é a cara de uma São Paulo que um dia já conheci tão bem, complexa para quem a estuda e bastante óbvia para quem acredita que ler demais é coisa de arrombado.

Aos domingos, quando ele vinha me buscar na casa da minha mãe e íamos passear em parques ou shoppings, eu quase sempre ficava nauseada no banco de trás do carro. Meu pai dirigia brecando seco e esbravejando pela janela: “Ê, domingueira, dia de fazer besteira!”. Segundo sua teoria, domingo é o dia do mau motorista, aquele que está aprendendo a guiar ou que saiu de casa apenas para se divertir, sem pressa, muitas vezes de ressaca, sem a obrigação de chegar ao trabalho.

Não sei se os conchegados do meu pai, morador da Vila Carrão, são incompetentes motoristas domingueiros, mas certamente são péssimos eleitores. Votaram em peso no Bolsonaro e, segundo o “Datacarlos”, vão de Nunes no domingo. Os mais velhos estão sempre carregando seus regadores antigos de lata e assoviando desarmônicos à procura de sabiás-laranjeiras. Meu pai espirra no quintal e vozes de diferentes casas lhe desejam saúde (aqui onde moro, se eu morrer vão achar meu corpo só quando as redes sociais me cancelarem e eu não aparecer para retrucar).

Não faço questão de decorar nomes, mas juro que quando os encontro, na porta de suas moradias precárias com caríssimos sistemas de segurança, trajando camisas módicas com grandes brasões puídos, eu sinto algo terno e bom. Tenho saudade de quando eu adormecia em sofás com o sol batendo de leve em tecidos Gobelin florais.

Quantas vezes senti o oposto disso na casa de amigos da elite intelectual? Um incômodo, uma sensação de que me observavam comendo com a faca na mão errada, falando demais, talvez com a voz muito alta ou com um inglês rudimentar e italianado.

Fiz parte de grupos que ajudaram a aquecer a campanha do Boulos. Em poucos meses saí de alguns e silenciei outros; não suportei. Eram um misto de ingenuidade, ego e erros repetidos. As palmas e as ideias direcionadas para si ou para quem já pensa igual a eles. Sacadinhas para emocionar herdeiros cursando o primeiro ano de letras e fazer vomitar os street-smart.

O auge foi quando lançaram a pulseira da amizade. Eu entendi que a temerosa e falsa imagem de guerrilheiro precisava ser derrubada, mas não dá para transformar um cara inteligente, corajoso, capaz de finas ironias, num Teletubbie. Boulos Taylor Swift. Imagina pegar esses domingueiros complexos, meio floristas, meio fascistas, e meter uma pulseira da amizade do Boulos em seus braços marcados por tatuagens religiosas ou manchas senis?

A imensa porcentagem da Zona Leste que não vota na esquerda sempre me aborrece, mas nada tem me irritado mais do que uma campanha inteira fazendo piada com bolo. “Massa de Boulos, quanto mais bate, mais cresce!” –francamente!

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