Espanando parafusos – 28/09/2024 – Antonio Prata

“Liso” é uma palavra perfeita. Ó como sai da boca sem farpas ou ranhuras. Fosse “lisdo” e já daria pra sentir um calombo. “Lisro” e haveria aí uma aspereza, como se uma plaina tivesse arranhado o adjetivo contra as fibras. “Crocante” é quase tão bom quanto “liso”. Fosse eu o dono da língua, no entanto, daria um up-gradezinho pra “crocrantre”. Uma crocância à cada mordida, quero dizer, sílaba.

Aparentes semelhanças entre significante e significado fazem com que às vezes a gente tenha a ilusão de que as palavras e as coisas têm um parentesco. Que entre o mundo e língua existe uma conexão natural. “As palavras e as coisas”, aliás, é o título de um ensaio em que o Foucault discorre sobre o tempo em que as pessoas pensavam que a língua e a realidade eram indissociáveis. A antiga crença na eficácia de uma maldição depende dessa assunção. As palavras estariam tão ligadas à realidade que, se soubéssemos enfileirar corretamente os sons, seríamos capazes de agir sobre ela. “Abracadabra!”.

Hoje, claro, sabemos que o encaixe é meramente funcional. Como já disse alguém, toda palavra é uma metáfora. Um símbolo, tão legítimo e tão arbitrário quanto duas linhas horizontais paralelas para representar “igual” ou o oito deitado, o infinito.

Gosto de imaginar as coisas como parafusos e as palavras como chaves: de fenda, de boca, phillips, allen e assim por diante. É possível tirar um parafuso phillips com uma chave de fenda? É, mas a gente o espana um pouco. Chamar uma “panela” de “recipiente”, por exemplo, é desrosquear um parafuso phillips com uma chave de fenda. A gente espana um tanto a realidade. Se queremos ser compreendidos, precisamos ser específicos. “Frigideira”. “Bule”. “Pirex”. “Gamela”.

O Millôr disse uma vez que nunca deveríamos escrever “coisa”. Afinal, “coisa” é um “recipiente” onde cabem inúmeras “coisas”. Pense um pouquinho e você vai chegar na “coisa” certa. Por exemplo: uma “coisa” é dizer “saudade é uma ‘coisa’ dolorida”. Outra “coisa” é dizer “saudade é um ‘sentimento’ dolorido”. A boa escrita consiste em, entre outras “coisas” —ou, entre outras “tarefas”, “talentos”, “buscas”, “esforços”— encontrar a chave perfeita para cada parafuso. Isso, óbvio, se partirmos do princípio —nem sempre verdadeiro— de que o objetivo da comunicação é ser claro. A clareza traz consigo uma consequência temerária: a compreensão. E se os outros nos entendem, podem discordar. Podem até, argumentando, veja só, provar que não falamos “coisa” com “coisa”.

Imagino que seja por prudência, portanto, que tanta gente, neste Brasil bacharelesco e instagramesco, faça exatamente o contrário. Existem infinitas maneiras de ser barroco e obscuro, à destra e à sinistra. A Tati Bernardi escreveu uma crônica hilária, anteontem, satirizando certo discurso moloide pseudo-sociológico que viceja em parte das nossas esquerdas. É toda nessa pegada: “Meu corpo-potência me lembra (apesar de agora ser mesmo o corpo-potência e não o corpo-memória) de que preciso de mais pluralidade de vivências para me ressignificar como um sujeito que diz “esta é a minha posição de sujeito”. Estaria eu, finalmente, e graças ao atravessamento dos afetos da minha ancestralidade, me aproximando de um devir-sujeito?”. Não significa lhufas, mas, em muitos círculos, funciona feito “Abracadabra”. É “sobre isso”. E não “está tudo bem”.


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