Lula foi à ONU defender sua visão sobre o que a globalização deve ser. É uma proposta inteiramente coerente com o que foi a política externa de seus governos anteriores, mas que dá alguns passos à frente.
A essência do discurso de Lula foi uma defesa do multilateralismo, a negociação de soluções globais para problemas globais em instituições como a ONU ou a Organização Mundial do Comércio, ambas defendidas por Lula em seu discurso. Lula também defendeu um tratado sobre pandemias a ser celebrado no âmbito da Organização Mundial da Saúde e uma “governança intergovernamental da inteligência artificial”.
O discurso de Lula começou defendendo o “Pacto para o Futuro”, documento aprovado em uma reunião ocorrida poucos dias antes da abertura da Assembleia. Em seu item 7, o documento diz: “hoje nos comprometemos com um novo começo do multilateralismo”. A frase mais forte do discurso de Lula foi “expressões como ‘desglobalização’ se tornaram corriqueiras. Mas é impossível ‘desplanetizar’ nossa vida em comum”.
A extrema direita costuma caracterizar o multilateralismo como “globalismo”, mas isso é falso. Nenhuma organização global tem poder de governo. Elas representam um compromisso de que os países membros tentarão resolver através da negociação problemas globais impossíveis de serem resolvidos por cada um deles, isoladamente.
Mas o antiglobalismo de Bolsonaro —que deu as caras no discurso de Milei— é sobretudo sacanagem contra os pobres. Ninguém ali está sinceramente preocupado com o risco de a ONU fazer seu filho virar gay. O medo é que a união dos países impeça os ricos de sonegarem impostos, ou proíba Elon Musk de patrocinar golpistas, ou coloque limites sobre a exploração predatória de recursos naturais. Bolsonaro e Milei não querem fortalecer o Brasil ou a Argentina diante da ONU, querem enfraquecê-los diante de interesses econômicos que, estes sim, já são globalizados.
Essa aposta no multilateralismo muitas vezes é ignorada nas análises sobre a política externa dos primeiros governos Lula. É fácil entender por que: ela não é politicamente instrumentalizável. Nesse caso, a diferença entre governos tucanos e petistas foi uma inflexão, não uma ruptura. No governo FHC, o mesmo Celso Amorim que foi chanceler de Lula atuou sob ordens de José Serra na OMC para conseguir a quebra de patentes que deu origem a nossos medicamentos genéricos.
Na segunda metade dos anos 2000, os resultados dessa estratégia foram se mostrando decepcionantes. O Brasil quase conseguiu mediar um acordo importantíssimo na Organização Mundial de Comércio, que provavelmente teria ajudado o mundo a crescer mais rápido nos anos seguintes. Porém, na última hora, Estados Unidos e Índia deram para trás. A ONU não foi reformada para incluir novas vozes, como pareceu que seria nos anos 2000. Desde então, o multilateralismo entrou em uma crise cada vez mais profunda.
Entendo quem ache que o discurso multilateralista de Lula parece velho, ideologicamente preso na época de seus primeiros mandatos. Mas essa crítica só faria sentido se, desde então, alguma outra visão tivesse oferecido soluções melhores para os problemas globais, que continuam se agravando. Respire a fumaça no ar e me diga se isso aconteceu.
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