No ranking das crueldades institucionais, a revista íntima de familiares de presos tem posição de destaque.
Modalidade de tortura física, moral e psicológica, com nítido contorno de racismo, violência de gênero e abuso sexual, agentes do poder público ainda ofendem mães, avós, filhas, crianças e companheiras de presidiários com a tolerância cínica de autoridades.
O julgamento da sua constitucionalidade pelo STF se arrasta desde 2016, quando chega processo do Rio Grande do Sul tratando da ilicitude da prova obtida mediante desnudamento de mulher e revista vexatória. O caso vai uniformizar a jurisprudência.
Em 2020, o relator Edson Fachin declara a prática inadmissível. Diz que a prova obtida é ilícita e que a ausência de equipamentos eletrônicos e radioscópicos não justifica abuso.
É curioso, pois todos os ministros do STF (são 10 votos) consideram a prática inconstitucional e perversa. O problema são os poréns, os entretantos, que se vão estabelecendo na decisão, ou, numa interpretação mais crua dos acontecimentos, o cinismo que observa o mal da violência, mas tolera a prática tendo em vista um bem maior.
O voto de Dias Toffoli, tão generoso e exagerado no decreto de nulidades quando trata de empresários e políticos corruptos, diz que a prova obtida a partir da revista íntima (aplicada em pretas e pobres, ligadas por laços afetivos a criminosos comuns) “só será ilícita se a própria medida se revelar inadequada, desnecessária ou desproporcional”.
Gilmar Mendes quer um prazo de 24 meses, a contar do final do julgamento, para a instalação de equipamentos como detector de metais e escâner corporal. Uma moratória às avessas. Não quer também a aplicação retroativa da nulidade: o passado de abusos, em processos encerrados, não tem importância. É gente pobre e preta.
A maioria está formada (6 a 4) para a proibição, mas o julgamento não termina. Alexandre de Moraes quer que o caso vá para plenário presencial.
Seu voto inaugura a divergência e parece ponderado. Quer “fundada suspeita” para a busca pessoal, mas para isso não basta um agente penitenciário corrupto preparar relatório afirmando que corre pela cadeia a “informação” de que familiares de determinado preso trarão drogas na próxima visita? Sugere a “concordância do visitante”, mas será que a discordância de pessoas pretas e pobres, tão vulneráveis, é mesmo aceitável na porta da cadeia? A negativa não seria motivo para “fundada suspeita”?
Minas Gerais editou lei proibindo revista vexatória em 1997 e São Paulo em 2014. No Rio de Janeiro, foi editada em 2015 e, mais explícito na crueldade, Flávio Bolsonaro (o processo das “rachadinhas” morreu por conta de suposta prova ilícita) constituiu advogada para contestar a lei em juízo: “revista íntima é um ônus a ser suportado”.
A visita de familiares é uma dificuldade para o sistema, mas é um direito. Os protocolos podem ser civilizados. O escâner corporal, por exemplo, se operado por pessoal desqualificado, inaugura um novo roteiro de humilhação.
Revista vexatória ainda é constante no Brasil. Armas, celulares e drogas entram na penitenciária sobretudo pela mão de funcionários criminosos ou intimidados, não em cavidades íntimas de familiares.
O Supremo sabe disso.
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