21 de outubro. Na ponta da bota italiana, o trem entra na balsa que o leva a Messina. Como a cidade não tem nada de típico —fora a granita de avelã, a raspadinha cremosa que que se come com brioche— ela é pouco visitada. Contudo, Messina abriga o alto drama de “A Ressureição de Lázaro”, a tela pintada por Caravaggio no fim da vida, ao fugir da polícia em Malta e ir à Sicília.
O Evangelho diz que Lázaro morrera há quatro dias e fedia, mas o Nazareno cismou em revivê-lo. A ansiedade sombria do quadro, no qual o defunto levanta a mão de má vontade, se opõe à clara calma de outro gesto, o do Barbudo ao criar Adão. O Michelangelo da Capela Sistina é metafísico, enquanto o Lázaro de Caravaggio se submete à Autoridade que o obriga a sair da cova e voltar à vida, mesmo que esteja podre e cheire mal.
Dia 22 de outubro. O Teatro Antigo de Taormina é usado continuamente desde o século 3º a.C. Criado pelos gregos, reformado pelos romanos e filmado por Woody Allen em “Poderosa Afrodite”, ele serve hoje de palco para shows e um festival de cinema ao ar livre. Enquanto houver arte e entretenimento, lá estará ele, com o Mediterrâneo de safira ao fundo.
Dia 23 de outubro. Savoca, uma aldeota nas montanhas, foi salva da imobilidade secular pelo cinema. Em “O Chefão”, Michael Corleone é apresentado a Appolonia no seu bar e se casa com ela na igrejinha ao lado. Mais de meio século depois, os devotos do filme vão lá tomar um drinque.
Dia 24 de outubro. Em Siracusa germinaram, brotaram e feneceram civilizações das quais restam apenas flores mortas. Nas suas ruínas ecoam as desavenças de gregos e romanos, muçulmanos e cruzados, normandos e espanhóis, otomanos e austro-húngaros, fascistas e comunistas.
A imponência da Siracusa da Antiguidade é obscurecida pela tumba e as catacumbas de Santa Lúcia. São dezenas as imagens de um sadomasoquismo extremado: a mártir leva seus olhos numa bandeja e um punhal lhe trespassa o pescoço.
Dia 26 de outubro. A pequenina Noto é uma imensa escada que se alça do centro histórico até a catedral barroca de San Nicolò. Modica é outra escadaria, mas que desce da catedral barroca de San Giorgio e se estreita até sumir no centro histórico.
O barroco é a estética da tensão entre os desejos da carne e as aspirações do espírito; entre o inferno em vida dos explorados (camponeses e artesãos) e o paraíso prometido pelos exploradores (Igreja e nobreza).
Dia 27 de outubro. O café da manhã em Modica é ao ar livre, no bar à sombra da catedral. O capuccino, o biscotte, o canolo e a spremuta são sinais de que Deus existe? Ou é o “dolce far niente” que fundamenta o bem-viver?
Dia 29 de outubro. O Vale dos Templos de Agrigento é superior até a seus similares na Grécia, exceto a Acrópole e Delfos. Passei a tarde nas ágoras e nos templos de Hércules e Dioscuri. O mais espantoso é o da Concórdia, no crepúsculo: sua estrutura, de 430 a.C., atravessou os séculos incólume, parece ter sido feita ontem.
A elegância das colunas dóricas; o efeito ótico que as faz parecer maiores; os frontões sem baixos-relevos; os séculos que empalideceram as cores —os detalhes e o todo evidenciam uma cultura voltada para o belo. É irônico que o Templo da Concórdia só tenha sido preservado porque, no século 6º d.C., foi transformado numa igreja católica.
Dia 1º de novembro. O Teatro Massimo, em Palermo, aparece em “O Poderoso Chefão 3”; é nele que matam Mary, a filha de Michael Corleone. Não ouvi a “Cavalleria Rusticana” do filme, e sim as sinfonias 39, 40 e 41, de Mozart. A 40, que todo mundo conhece e ama, empalideceu diante da 41, enigmática a ponto de não se saber se é vivaz ou melancólica.
2 de novembro. Nunca tinha ouvido falar de Giacomo Serpotta (1656-1732), que fez as esculturas e relevos de cinco oratórios de Palermo. Usando um material vulgar, o estuque, ele os encheu de anjinhos serelepes, santas sensuais e crianças risonhas. Seu barroco é o oposto simétrico do de Bernini: em vez de gravidade, leveza; no lugar da dor, prazer; ao contrário do grandioso, o gracioso; onde mármore, gesso.
3 de novembro. Hospedo-me num apartamento do Palazzo Lampedusa, da família do autor de “O Leopardo”, o grande romance da decadência da nobreza siciliana. Bombardeado pelos americanos na Segunda Guerra Mundial, o palácio foi reformado de alto a baixo.
Giuseppe Tomasi di Lampedusa diz no seu livro que não há mais, no teto do palazzo, imagens dos deuses que se achavam imortais: “uma bomba fabricada em Pittsburgh, na Pensilvânia, provou o contrário em 1943”.
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