Mark Robinson, vice-governador e atual candidato ao governo da Carolina do Norte, EUA, proclama-se negro nazista e favorável à escravidão. Justifica: “há pessoas que merecem ser escravizadas”. Não se inclui entre elas, claro. São muitas as aberrações dessa ordem na história geral da diáspora negra, salientes em contextos sociais diversos.
O personagem Prudêncio, de Machado de Assis, é um exemplo ficcional da transição de escravo oprimido a alforriado opressor. Episódios análogos registraram-se no governo do Bolsonaro. Já na relevante crônica da guerra dos escravizados na Jamaica, em meados do século 18, avultava o nome do erudito Edward Long, que descrevia a luta da população escrava nativa contra os insurretos africanos. O medo de Long era tanto que, para ele, a simples existência de africanos “deformava a beleza deste globo de tal maneira, que eles merecem ser exterminados da Terra”.
“O medo dos africanos tinha de fato inspirado os primeiros esforços para restringir o comércio de escravos” (Vincent Brown em “Uma Guerra Afro-Atlântica”), o que ressoava no Império Britânico e na América. O nazi-racismo de Robinson é um eco histórico dessa crioulização, que impregnou o imaginário racial de uma escravidão mais amável e dócil, contrastante com o vigor da resistência negra no Caribe.
Há uma perversa lógica histórica na associação em Robinson de nazismo a escravidão, pois Auschwitz, além do campo de extermínio, foi também a maior fábrica de escravos. Essa aberração é deriva trumpista da clivagem social e humana que, apesar do poderio econômico, tecnológico e bélico da América, ameaça o Estado nacional. Nação nenhuma se deduz diretamente da estrutura social, e sim da convergência de efeitos imaginários e ideológicos, como os de povo, país e língua. Constituída por crenças, mas também medos, a sociedade reconhecida como nação é uma comunidade imaginada.
Até agora, sob a mística da burguesia tradicional, o nacional era uma homogeneidade caracterizada pelo progressismo e por um passado comum. Sob o influxo do neoliberalismo, com uma apreensão heterogênea da história, milenarismos laicos e religiosos prometem duvidosas respostas para o desemparo popular. Trump e próceres da ultradireita são variantes desse fenômeno, que não se sintoniza pelo Estado nacional, e sim por um sistema financeiro e militar em torno de uma sociedade restrita. O povo nacional é relegado à lata de lixo da história.
Um personagem como Robinson é sintoma menor da decadência do Estado nacional americano. Mas muito significativo entre nós, país majoritariamente afro, que tenta amainar, por políticas de ação afirmativa, o legado desigual do passado escravista. De fato, o contrassenso de um afro nazista e partidário da escravidão só é possível na abolição do passado comum como princípio espiritual.
Na decadência, nação deixa de coexistir com pátria, que se sobrepõe como princípio. Abre-se um caminho tóxico para a ideologia da unidade militarista, da educação cívica pelas armas e da política como paródia grotesca da representação. Aconteceu com o nazifascismo, ensaia-se na América. Se Trump vencer, os abutres da carniça do passado, como Robinson, voarão também aqui.
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