Me senti avassalada por um ídolo a ponto de tremer e chorar – 17/10/2024 – Tati Bernardi

Aos 13 anos, eu era muito fã da boy band New Kids on the Block. Ouvia o disco o dia inteiro, assistia três vezes por dia à surrada VHS de um show deles e colecionava figurinhas, revistas e pôsteres. Chorei compulsivamente quando meu pai me levou para ver uma banda cover horrível na Mooca.

Depois disso, tive minhas fases com The Smiths, Beck, Los Hermanos e Radiohead. Com os escritores Clarice Lispector, Hermann Hesse, Nelson Rodrigues e Marguerite Duras. Por fim, com os diretores Justine Triet, Luca Guadagnino, Paolo Sorrentino, Xavier Dolan e Karim Aïnouz.

Mas, nesta última Flip, ao ficar de frente para o escritor Édouard Louis, eu não tinha mais meus 45 anos nem a bagagem cultural e psíquica que adquiri nas últimas três décadas. De repente, eu tinha 13, e me senti avassalada por um ídolo a ponto de tremer, chorar e sentir enjoos terríveis.

Quando entrevistei o autor para este jornal, alguns dias antes de ir a Paraty, eu não acreditei que ele entraria no Zoom. Fiquei ali, parada, chocada com a minha cara de pau. E quando seu rosto surgiu na tela do meu computador, eu, que tinha ensaiado as perguntas em inglês por 72 horas ininterruptas, apenas travei por completo e disse: “Forever”. Não sei o que eu quis dizer com isso. Hoje penso no Mussum e fico rindo sozinha. Será que eu estava com o forévis na mão, com medo de infartar, chorar, não conseguir fazer a entrevista?

Na Flip, quando a mesa de Édouard começou, precisei enfiar na boca metade de um Rivotril velho que eu tinha na bolsa. Ele se sentou na beiradinha da cadeira. Os ombros e braços estavam curvados para a frente, pendentes, como quem precisa desesperadamente se proteger. “Ele vai quebrar”, pensei. Ele é um passarinho com uma asa quebrada. Ele é um avestruz desengonçado. Se o magoarem, se ousarem não o amar, estou pronta para decepar a cabeça de um por um.

De repente, o passarinho, o avestruz, pega o microfone. Lê um trecho da sua obra “Mudar: Método” com a força de uma águia e a beleza de um pavão. (Metáforas com pássaros: ser fã é uma coisa ridícula.) Nesse momento, eu recordo tudo o que sinto quando o leio, e fecho os olhos. Tiro o fone que traduzia o francês. Eu o entendo como toda aquela elite ali sentada, aplaudindo emocionada, jamais vai entender. Então tive ciúmes. E tive raiva.

Ele é ovacionado pela plateia toda de pé. O menino que me matou ano após ano a cada parágrafo de dor, de solidão, de não pertencimento. A cada violência. O pai com vergonha da sua delicadeza, a mãe rindo da sua apendicite grave com infecção abdominal, seu irmão o espancando, os colegas de escola cuspindo nele, o estupro, o velho dizendo que ele lhe dava tesão porque tinha cara de nazista. Agora Édouard está aqui, protegido por suas palavras. E ele as lança como quem perfura nossa pele até chegar na carótida.

Seu olhar tão doce, o jeito como dança, canta, tenta suportar ter um corpo no mundo. Ele passa por mim e grita “My angel!”. O desejo que sinto de cuidar, de ser amiga, de dizer tudo, de ficar quieta, por perto, sentada durante horas observando enquanto ele autografa livros, esconde partes do rosto, desaprova fotos. Como posso, aos 45 anos, ser uma fã assim, como uma menina, uma criança, uma adolescente, uma groupie, uma mãe? Step by step, ooh, baby. Te amo forever, Édouard.

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