Mulheres pensam em se defender de agressor constantemente – 29/10/2024 – Joanna Moura

Eu tinha quatorze anos quando saí num bloco de Carnaval pela primeira vez. Não digo esses bloquinhos de rua que se popularizaram em São Paulo entre a juventude cool da cidade, que transforma Beatles em samba e Alessandra Negrini em porta-bandeira.

Eu morava em Salvador, portanto, o bloco a que me refiro era um desses com trio elétrico, axé com trocadilhos e um amontoado de gente trajando abadás de gosto duvidoso, que depois serviriam de roupa de academia até o Carnaval seguinte.

Eu sei, quatorze parece cedo demais para uma donzela se aventurar pela avenida, mas eram outros tempos, outras regras, adolescência dos anos 1990, com direito a banheira do Gugu ao vivo nas tardes de domingo.

E não seria a minha primeira vez enfrentando uma muvuca. Àquela altura, eu já tinha ido a um punhado de shows e aprendido um punhado de coisas sobre como sobreviver a essas situações de multidão. Da posição correta de fazer xixi em banheiro químico, minimizando o contato com qualquer superfície, ao jeito de dobrar para fora o selo de alumínio do copo de água para não encostar a boca na parte de fora.

E, é claro, dentre os aprendizados estavam aqueles relacionados a se defender de homem. É que o anonimato das multidões sempre se mostrou propício aos mais diversos abusos (mas na época a gente não chamava disso): mão na bunda, puxada de braço, uma boca que surge do nada e se pressiona contra a sua.

Já tendo experimentado todos eles, também já havia criado meus métodos de defesa. Semanas antes daquele primeiro Carnaval me preparei como pude. Deixei as unhas crescerem e arredondei as pontas com a lixa para usá-las como arma, se necessário.

O esforço se provou útil já no primeiro dia, quando, logo no início do percurso, ali pela frente do Morro do Cristo, senti um braço me envolver por trás, uma chave de pescoço frouxa no que poderia ser uma tentativa de roubar um beijo, ou enfiar um pano molhado de lança-perfume na minha boca, ambos ataques muito comuns nas multidões arrastadas por danças da manivela da época.

Imediatamente, cravei as unhas com toda força no braço do sujeito cujo rosto não cheguei a ver. Apenas ouvi seu grito, me xingando de filha da puta, ofendido pela minha ousadia de reagir ao seu ataque.

Nesta semana, um famoso programa de entrevistas do Reino Unido reuniu os atores Paul Mescal, Denzel Washington e Eddie Redmayne, além da atriz Saoirse Ronan. Papo vai, papo vem, Eddie compartilhou as técnicas de defesa pessoal que havia aprendido para se preparar para um novo papel. Entre elas estava usar o celular como uma arma para aumentar a força de um contra-ataque num possível agressor. Os demais atores riram, questionando quem se lembraria disso na hora de um ataque? “Quem fica pensando nisso?”, perguntou Mescal. Ao que Saoirse respondeu: “toda mulher. Nós pensamos nisso o tempo todo”.

Sua resposta viralizou nas redes, encontrando eco na experiência de toda mulher e menina de doze, treze, quatorze anos que, ao longo da vida e de abusos e agressões sofridas, teve que aprender a tentar se proteger. Não apenas nas multidões, mas especialmente no vazio. Na viela, na rua escura, no táxi, no Uber, no elevador, na sala de reunião, no possível encontro solitário com um potencial abusador que, assim como esse braço que me atacou na multidão, não tem cara. Pode ser qualquer um.


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *