O novo filme de Woody Allen, “Golpe de Sorte em Paris” (“Coup de Chance”), estreia no Brasil na próxima quinta-feira (19). Ouço alguns protestos e pedidos de boicotes. Confesso: já tenho o meu ingresso. Meu interesse e minha admiração pelo diretor são mais fortes do que qualquer desejo de cancelamento, coisa que, aliás, não costumo praticar com facilidade. A razão é simples: cancelar o diretor seria cancelar o meu direito ao deleite que sinto ao assistir aos seus filmes.
A essência de toda obra pressupõe que ela seja recebida pelo espectador de acordo com sua leitura pessoal, independentemente de quem a criou: o foco deve ser a arte em si. Quando o artista (aqui incluo escritores, roteiristas, compositores e todos os criadores) entrega sua obra, ele deve automaticamente sair de cena.
Mas será que é possível julgar uma obra estritamente pela estética sem sermos “contaminados” pelas histórias que ouvimos dos artistas? Invejo quem o consiga.
Como, então, equilibrar a admiração e a repulsa? Como separar o monstro do gênio? Allen foi inocentado –as investigações concluíram que sua filha Dylan não foi abusada sexualmente. Isso não o torna nenhum santo. Casou-se com a filha adotiva da sua ex-mulher, é perturbado (se não fosse, não escreveria filmes tão deliciosamente perturbadores), politicamente incorreto, avesso a entrevistas e prêmios. Mas também nos presenteia com roteiros que nos fazem pensar sobre nós mesmos: é essa a essência da verdadeira arte, a provocação.
O ponto crucial do cancelamento não se trata dos outros, trata-se de nós mesmos. A partir do momento em que uma produção artística ou literária é entregue ao mundo, ela passa a existir a partir das várias leituras que recebe. A relação não acontece mais entre a obra e o seu autor, mas sim entre a obra e o espectador.
Poucos gênios escapam. Franz Kafka foi recentemente cancelado por ser viciado em pornografia e frequentar bordéis. É curioso que a geração Z, que se diz defensora do “meu corpo minhas regras”, cancela o autor justamente pelos “pecados do corpo”. Uma incongruência ironicamente kafkiana.
Philip Roth era misógino e foi cancelado; sua biografia, escrita por Blake Bailey, acusado de abuso sexual, também foi cancelada. Picasso foi cruel com as mulheres e destruiu a vida de várias. A ícone do feminismo Simone de Beauvoir seduziu jovens alunas de filosofia e negou até a morte suas relações sexuais com mulheres. Miles Davis, o homem que revolucionou o jazz, agredia a esposa. J. K. Rowling falou insanidades sobre questões transgênero. Virginia Woolf escreveu comentários antissemitas em seus diários. Todos eles fizeram coisas horríveis –e todos eles fizeram coisas maravilhosas.
Como diria Albert Einstein, que hoje seria cancelado por suas ideias políticas e conflitos familiares, tudo é relativo. Alguns trabalhos, ainda que sejam grandes obras de arte, se tornam indigestos depois de reveladas transgressões de seus criadores. Roman Polanski é um desses exemplos para mim. Fico com a memória de seus filmes que tive a sorte de assistir com isenção de julgamento. Não consigo mais do que isso.
Gostemos ou não da biografia dos artistas, eles continuam exercendo papel fundamental na história da cultura e da arte. Cancelar suas obras seria cometer um crime contra a cultura.
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