É tarde. O único som vem do téc-téc-téc dos meus próprios dedos ao teclado, lutando com palavras e parafraseando Carlos Drummond de Andrade mal rompe a manhã. Ele, que também escreveu sobre nós. Seres incompreendidos que são noite e palpitam no escuro, deleitosos de lusco-fusco… Até que o vráááááá das marteladas na obra do vizinho esculhambe as remelas de nossa poética.
Deus não ajuda quem cedo madruga com cachorro latindo, interfone tocando e faxina com móvel arrastado pra lá e pra cá. Se reclamamos, somos olhados de cima a baixo em nossas camas ainda desfeitas. Julgados pela superioridade moral de iluminados que saúdam o sol, enviando figurinhas de “bom dia, grupo!” e fazendo vibrar nossos celulares com a força de um tapa em nossas caras amassadas pelo travesseiro. A eles, oferecemos a outra face: tapada por uma máscara de dormir com desenho do Snoopy morgado em sua casinha.
E que fique claro, apesar dos blecautes pesados que instalo em minhas janelas: não é sobre fanfarrões do crepúsculo, inimigos do fim e maratonistas de bar. Aprecio o respeito a todos, sem moderação. Refiro-me a garçons, músicos e padeiros. Plantonistas de emergência e funcionários de funerária, sempre às voltas com o sono eterno. Falo em nome dos quietos, que aproveitam pra ler e botar séries em dia. Ajustar planilhas e ter enxaquecas noturnas. Notívagos pragmáticos, que trabalham com gato no colo.
Hoje, eu mesma bato ponto no turno da noite e faço um programa da madrugada. Lembrando dos tempos em que a TV saía do ar após o “Corujão” e uma voz anunciava: “faremos uma pequena pausa, apenas o tempo necessário para você despertar para um novo dia, uma nova vida”. Antes mesmo do Telecurso 2º Grau, todos nós embalados pela doce sensação do mundo inteiro acordar e a gente dormir – em versos não do Drummond, mas do Cazuza.
Há malefícios em tais viradões, eu sei. Pra saúde do corpo e dos relacionamentos, pois casais com fusos trocados vivem uma espécie de “Feitiço de Áquila”, mal se trombando entre lençóis. No entanto, nem Romeu e Julieta teriam tido aquela noite de amor, ao som da cotovia, se tivessem ido se deitar junto com as galinhas.
Agora, pelo menos, há um terno que nos define, justifica e de certa forma perdoa: “cronotipo”. Não mais “malandros”, “preguiçosos” e “indolentes”, viramos “indivíduos de cronotipo vespertino”. Então, até que inventem outra palavra e com este texto já entregue, com licença. Zzzz. Só mais cinco minutinhos.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.