Duas entidades sem rosto e duas comemorações de infortúnios se cruzaram nos últimos dias. O mercado financeiro precificou um eventual afastamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a partir de suas cirurgias, e a internet riu muito do assassinato de um CEO de plano de saúde. Restou aos jornais falar do que estava acontecendo, mas como?
No primeiro caso, a hostilidade dos agentes do mercado financeiro ao presidente, e vice-versa, já é conhecida e cresce abertamente. Pesquisa da Genial/Quaest indicou, duas semanas atrás, que 90% do mercado financeiro reprovam o presidente. As declarações do mandatário e de seu partido em relação à “Faria Lima” não permitem imaginar que haja trégua no sentido oposto.
A Folha acabou ficando no meio da troca de chumbo quando deu a notícia, às 16h27 de quarta (11), de que o presidente passaria por uma segunda intervenção cirúrgica. Imediatamente após a publicação do furo, “o mercado” reagiu com uma queda que formou uma falésia no gráfico do preço do dólar.
Ao noticiar a cotação da moeda americana ante o estado de saúde de Lula, porém, a Folha deixou fora do título a palavrinha mágica (“mercado”), o sujeito da ação: “Em dia de Copom, dólar despenca para R$ 5,97 com notícia de procedimento médico de Lula”.
As pontas soltas ainda permitiram interpretações de que o mercado desejava a morte do presidente. O jornal, como tradicional portador de más e às vezes mal formuladas notícias, foi empurrado por uma parte do leitorado para o rol dos que torceriam contra a saúde de Lula.
A confusão estava armada. É preciso reconhecer que faltou um pouco de espanto (ou ao menos um “como assim?”) para motivar questionamentos mais profundos no relato da Folha, talvez já acostumada demais às explosões de humor do mercado.
O jornal, então, publicou um segundo texto para contar do começo o que era e o que significava a reação da Faria Lima ao estado de saúde do presidente: “Queda do dólar e alta da Bolsa refletem aposta de que Lula não disputará em 2026”.
A aposta seria não exatamente na morte, mas num afastamento que colocaria o vice-presidente, Geraldo Alckmin, para pilotar a política fiscal. Banqueiros eram ouvidos em “off”, ou seja, sem identificação. Operadores do mercado, com menos motivos para timidez, entravam com nome e sobrenome apontando as perspectivas de ao menos uma licença de Lula. O presidente continuou a despachar da UTI.
Leitores reclamaram do fato de a Folha reproduzir a “opinião” do mercado, “normalizando tal barbaridade”. Aí há um problema.
Seria um erro o jornal omitir a apuração sobre os motivos da animação do mercado, ainda que fruto de pensamento mágico. Se a condição de saúde do presidente é alvo de especulação na Faria Lima, não faz sentido escondê-la de quem lê e paga pelo conteúdo da Folha (você), por mais irritação que isso possa gerar. Mas, sim, faltou algum espanto —ou supor que ele pudesse existir.
Enquanto isso, no X/Twitter, Instagram, Bluesky, TikTok (e talvez até entre as catacumbas do Facebook), comunidades se regozijavam com o assassinato do CEO da UnitedHealthCare nos EUA.
Passados os primeiros dias de graça, um dos primeiros sites a se espantar (aqui também foi preciso espanto) com a situação foi o The Free Press, da jornalista Bari Weiss —ela entrou para tentar levar a diversidade “de direita” ao New York Times logo após a primeira eleição de Donald Trump e três anos depois pediu para sair.
A Folha reproduziu títulos do New York Times e da BBC que tentavam entender o fenômeno: “Assassino de CEO da UnitedHealthcare é tratado como herói por parte do público nos EUA”, “O que explica fascínio nas redes sociais por Luigi Mangione, suspeito de matar CEO em NY”, “Como beleza de Luigi Mangione, assassino de CEO, ofuscou crime violento”.
Um levantamento da organização NCRI, que monitora radicalização e ameaças nas redes sociais, mostrou que, das 10 postagens com maior engajamento no X/Twitter sobre o assassinato, 6 “expressaram apoio explícito ou implícito ao assassinato ou atacaram a vítima”.
O ambiente de tudo ou nada contamina também o jornalismo. A capacidade de ainda se espantar com essas reações e buscar nuances e explicações para elas, sejam as do mercado ou as de justiceiros online, talvez ajude a evitar surpresas piores.
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