Olimpíadas: Raí diz que futebol masculino está decadente – 10/08/2024 – Mônica Bergamo

Andar pelas ruas de Paris com Raí e com sua mulher, Viviane Lescher, é parar em cada quarteirão para que uma pessoa o cumprimente, elogie e tire fotografias. É começar a chover e um desconhecido correr em sua direção para dar um guarda-chuva de presente.

Ao contrário de celebridades internacionais como ele, Raí jamais se estressa com quem o aborda. É totalmente acessível.

Naquela manhã parisiense, com a cidade em festa por causa das Olimpíadas, Raí conversou com a coluna sobre o que entende ser a decadência do futebol masculino brasileiro, a imagem negativa de Neymar e o engajamento para derrotar a ultradireita na França e no Brasil. “Sempre fui discreto, mas há limites”, diz.

Raí se tornou ídolo na França depois de jogar no Paris-Saint Germain (PSG) de 1993 a 1998, e ganhou do governo a cidadania francesa.

Em junho, ele concluiu o mestrado em Políticas Públicas na Sciences Po. Agora pretende ficar seis meses em Paris, onde é sócio do Paris Futebol Clube, e seis meses no Brasil, onde mantém a Fundação Gol de Letra e a Raí + Velasco, que tem cinema e camarote no Morumbi.

O ex-jogador se vê como uma espécie de embaixador informal do Brasil na França. Almoçou com Emmanuel Macron e Lula (PT) quando o presidente francês visitou o país, em março —e voltou com ele a Paris no avião presidencial.

Nesta entrevista, revelou que vai escrever um livro sobre o pai, Raimundo Vieira de Oliveira, que se preocupava com o futuro do filho, distraído e com notas escolares baixas. Pensou que ele poderia ser músico ou, por ter uma boa alma, virar padre.

MULHERES NO FUTEBOL

Quando você volta pro Brasil?

Na verdade eu nunca saí do Brasil. Eu fiquei mais tempo na França nesses dois anos por causa do mestrado, e minha formatura emendou com as Olimpíadas. Mas normalmente a cada dois meses eu vou para o Brasil.

Desde que parei de jogar, o meu objetivo é ficar meio a meio [nos dois países]. Mas quero ficar com propósito, e não turistando. Quero ter trabalho dos dois lados e motivo para estar nas duas cidades. Sou agora parceiro do Paris Futebol Clube, que é um projeto novo, interessante. Sou conselheiro e embaixador do clube, já trouxe investidores como a Renault. É um projeto que investe nos jovens, no futebol feminino —é um dos poucos clubes, aliás, em que as meninas são melhores do que os meninos. Elas já estão na Liga dos Campeões, na primeira divisão. Eles ainda estão na Segunda Divisão.

Você gosta de futebol feminino?

Comecei a acompanhar nos últimos tempos. Me surpreende como a qualidade do jogo melhorou. Eu sou um ativista pelo futebol feminino, até pela causa que ele representa. As jogadoras foram alijadas do processo por muito tempo. Os grandes times pagam bem. As jogadoras do meu time, por exemplo, atuam como profissionais. Mesmo assim, elas ainda precisam ter um segundo trabalho. Elas ganham [salário], conseguem viver, mas não conseguem guardar dinheiro para o futuro.

A final [Brasil contra EUA] de ontem [sábado] foi um jogão. As brasileiras dominaram no primeiro tempo e mereciam ter saído na frente, feito um ou dois gols. No segundo tempo, as americanas foram superiores mas mesmo assim poderíamos ter empatado no final [os EUA ganhou a partida por 1 a 0].

O futebol feminino nos EUA é uma instituição, uma potência, muito mais consolidado do que o próprio futebol masculino. É um dos esportes mais populares por lá, mais praticados por mulheres, principalmente por crianças e adolescentes. Ter jogado melhor que as americanas na final já foi uma grande vitória.

Estou muito otimista com a Copa do Mundo feminina no Brasil em 2027. E principalmente com o efeito desse evento nas próximas gerações, em como pode popularizar, motivar, inspirar muito mais meninas a jogarem futebol.

Investir na formação de treinadores é ainda mais importante no futebol feminino. O sucesso do Arthur Elias, treinador das meninas, vai encorajar muitos treinadores a querer atuar com mulheres.

DECADÊNCIA DO FUTEBOL MASCULINO

E o futebol masculino, você acompanha? O Brasil está em uma decadência?

É da seleção que você está falando?

É.

Ah, o Brasil está numa decadência, com certeza. Você não vê perspectiva de sermos campeões do mundo no curto prazo. Pode acontecer, porque temos talentos [individuais]. Mas o Brasil estava há dois anos sem um treinador fixo. Mudou várias vezes [de técnico]. Anunciou [que tinha contratado o treinador] [italiano Carlo] Ancelotti [em junho do ano passado], mas ele não veio. Agora começou com o Dorival [Júnior], vamos ver até quando [ele fica]. Tem que dar um tempo, né [para ter resultados]. Mas é claro que a seleção não tem as melhores condições de ter bons resultados.

Vê problemas estruturais?

O futebol do Brasil sempre foi baseado nos talentos e nunca investiu muito na formação de treinadores. Os super-treinadores como o Telê Santana, por exemplo, aprenderam na prática. Então, claro, você vai sempre ter os gênios como ele. Mas são raros. Como não investimos em treinadores, hoje 90% dos técnicos dos últimos campeões brasileiros são estrangeiros. É a comprovação do que eu sempre pensei. Se na elite do futebol você não tem treinadores suficientes, imagine na formação.

Em países como Portugal, Espanha, França, Inglaterra, eles sempre investiram nos treinadores, que por sua vez formam os jogadores. O Brasil se acomodou e pensou ‘ah, sempre vamos ter grandes jogadores e vamos ganhar por causa disso’. Mas o futebol foi evoluindo. Hoje em dia a técnica, os esquemas táticos e a estratégia contam muito.

O Brasil tem curso reconhecido de treinador há muito pouco tempo. Os outros países têm isso há 50 anos. Antigamente, só o talento bastava. Hoje, não.



Penso que o Neymar teve dois problemas na vida: contusões em momentos [importantes]. E às vezes ele alimenta muita polêmica onde não precisa

SUPERSALÁRIOS

E a questão do excesso de dinheiro que alguns jogadores ganham?

É um problema mundial, não é só do Brasil. Os jogadores hoje são megaestrelas. Alguns sabem lidar com isso, outros não.

No seu tempo não era assim?

Não tem nem como comparar. Eu não reclamo porque ganhava super bem [ele era o camisa 10 da seleção quando o Brasil conquistou o tetracampeonato]. Mas hoje um jogador [de elite] ganha em seis meses o que eu ganhei na carreira inteira. Isso termina mexendo com a cabeça.

Os jogadores são muito assediados, e acabam blindados. Cada um tem o seu assessor de imprensa, o seu nutricionista, o seu empresário, a sua equipe. Fica no seu universo, cuida do seu. Na nossa época, todos esses profissionais que nos atendiam eram do clube. Mas é natural. Fica difícil para um garoto que se transforma em uma estrela gerir todo esse assédio, toda essa grana, organizar tudo isso.

Você acha que o Neymar, por exemplo, consegue organizar isso bem?

Ele é um atleta genial, um jogador de talento. Mas penso que o Neymar teve dois problemas na vida: contusões em momentos [importantes]. E às vezes ele alimenta muita polêmica onde não precisa. E isso prejudica, conturba a carreira dele. Por causa das polêmicas, as pessoas têm uma imagem muito negativa dele.

O engraçado é que todo o mundo que conhece o Neymar —eu já o encontrei, cumprimentei, mas não o conheço bem— gosta do Neymar. Pelo lado humano, ele não é um cara do mal.

ENVOLVIMENTO NA POLÍTICA

O presidente Lula (PT) nomeou no início de seu governo uma ministra do Esporte muito respeitada em seu meio, a ex-jogadora de vôlei Ana Moser, que deveria estar aqui hoje representando o governo nas Olimpíadas, mas foi substituída pelo Centrão. Como viu a saída dela?

Eu vejo de uma maneira cética. Ela saiu por questões de governabilidade. É triste. As pessoas às vezes não são escolhidas por sua capacidade técnica, mas por outros interesses. Mas a Ana [Moser] está aqui em Paris. Organizamos juntos na [Universidade de] Sorbonne um debate sobre política pública. Estamos trabalhando em um grupo que, junto com o Instituto Península, vai apresentar até o fim do ano ao governo um plano sistêmico que envolva educação, saúde e esporte para todos, não apenas para os atletas de elite. É possível fazer política sem estar no governo.

Você fez campanha para a derrota da ultradireita nas mais recentes eleições da França. A esquerda ganhou, mas até agora não levou. Como analisa a situação no país?

Eu me envolvi porque me chamaram, eu sou cidadão francês desde 2006. E me preocupa esse movimento global [de ascensão da extrema direita]. E foi incrível porque o meu discurso [num comício] repercutiu no Brasil tanto quanto na França. Eu fiquei surpreso. Acho que acertei porque as pessoas, na França e no Brasil, estão sensíveis aos mesmos temas.

As preocupações são parecidas, com extrema direita, democracia, racismo. E a minha opinião foi muito baseada no que eu vivi no Brasil. Eu contei o que foram os quatro anos de [Jair] Bolsonaro [PL]. Eu dei o testemunho do que é viver sob a extrema direita.

Ao se posicionar politicamente, isso não te afeta em outras áreas?

Com certeza eu coloco muita coisa em risco, e já perdi muita coisa. Já houve patrocinadores que pensavam em fazer projetos comigo e recuaram. Querendo ou não, o país está dividido.



Muita gente dizia para eu não me manifestar [na pandemia], ter cuidado. Mas, gente, foi um nível de absurdo que não dava para ficar quieto

Mesmo assim, você acha que vale a pena?

Eu sempre fui um cara discreto. Mas acho que tem limites. Quando estamos no meio de uma pandemia [de Covid-19], com centenas de milhares de pessoas morrendo, o cara [Bolsonaro] fala de cloroquina? Não sei se tivemos uma involução na sociedade, ou se agora estamos mostrando os nossos demônios que antes estavam escondidos, envergonhados. Mas a partir do momento em que se começou a naturalizar discriminação, violência contra as mulheres, contra meninas de 13 anos estupradas —como não falar sobre isso? São coisas básicas. É o limite dos valores humanos.

Eu sempre me posicionei, mas nunca de uma forma tão veemente. Sempre fui paciente, tranquilo. Mas eu estava no Brasil na pandemia. E chegou uma hora em que eu dava umas estouradas, era um sentimento que vinha forte, lá de dentro. Muita gente dizia para eu não me manifestar, ter cuidado. Mas, gente, foi um nível de absurdo que não dava para ficar quieto.

Você acha que essa ultradireita está definitivamente vencida?

Não, longe disso. Mas eu guardo a esperança de a gente reverter esse movimento. É bom também porque a gente fica sempre alerta contra esse lado perverso da sociedade. Que existe, que está vivo.

Há diferença entre a extrema direita francesa e a brasileira?

A grande diferença é que aqui você tem um tecido social muito mais organizado. Se um cara de extrema direita vencesse, ele teria muita resistência para implantar coisas que talvez no Brasil ele conseguisse. Ninguém aqui toca na qualidade da educação pública, na saúde pública.

É diferente do Brasil e também dos EUA, onde ainda se discute se a saúde será pública. As coisas aqui já estão estabelecidas em um patamar muito mais civilizado, organizado. Mas, em termos de valores [da extrema direita], é a mesma preocupação. É absurdo demais.

Vai voltar ao Brasil para as eleições municipais? Vai votar? Em quem?

Sim, vou votar em São Paulo. Eu vou analisar, mas estou mais para o [Guilherme] Boulos [PSOL]. Ele é uma liderança, tem uma história interessante, tem legitimidade para falar do que ele fala. Eu acredito muito nele. E achei legal também que, pela primeira vez, o PT de São Paulo abriu mão de candidatura para apoiar outro partido.

Não acha que a esquerda, no Brasil, depende excessivamente da figura do Lula?

É uma coisa que me preocupa, e é uma crise global de lideranças também. Aqui na França, por exemplo, o Macron não vai poder se reeleger. E até agora não surgiu outro nome. No Brasil há um desafio maior, por causa do tamanho do país. Você pode ser muito conhecido no sul, mas não no norte, no nordeste.

Mas um cara em quem eu boto muita fé é no [ministro da Fazenda, Fernando] Haddad. É um cara coerente, inteligente, preparado, muito fiel. E a formação fala muito: Filosofia, Ciências Sociais, Economia.

INFÂNCIA

O mesmo perfil do seu pai?

É, talvez eu me identifique com ele [Haddad] por causa disso. O meu pai, um homem que saiu da periferia de Fortaleza, um autodidata [que depois fez três faculdades], falou para o Sócrates [jogador e irmão de Raí] quando ele ameaçou se candidatar: ‘Você vai fazer o que sempre foi o meu sonho, vai ser deputado constituinte [que escreve e aprova a nova Constituição]’. Veja, não é que ele queria ser deputado. Ele queria ser deputado constituinte. Como era a sofisticação dele, né?

Eu tenho um projeto de vida que é fazer um livro sobre o meu pai, eu já tenho muita coisa pesquisada e guardada.

É verdade que seu pai te pedia para cantar porque achava que você não daria certo em nenhuma profissão e talvez, se tivesse boa voz, poderia seguir essa carreira?

[rindo] Para você ver como o cara era uma figura. [Dizia] ‘Canta aí, deixa eu ver se você [consegue].’ Ele era um cara pessimista, de início. Ele fazia tudo para dar certo, mas demorava a acreditar. Eu era muito distraído, não ia tão bem na escola quanto os meus irmãos. E ele dizia ‘quem sabe o Raí tem uma alma boa e vai ser padre’. Ele não estava vendo muito futuro para mim. Mas eu tinha apenas 13 anos.

Eu sempre tive alguns erros. Por exemplo, eu troco P com B. Eu hoje teria o diagnóstico de algo como dislexia. Eu perco óculos, chave. Hoje existe diagnóstico. Naquele tempo a pessoa tinha problema, [diziam] ‘vai cantar, jogar bola’.

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