Os adjetivos que estão virando substantivos – 09/10/2024 – Sérgio Rodrigues

“Técnica e tática contam, mas o mais importante numa decisão é o mental.” “Tomar um gol antes dos cinco minutos de jogo abala o psicológico de qualquer jogador.” “Um bom treinador sabe cuidar do emocional do atleta.”

Quando se fala da linguagem de comentaristas e narradores de futebol, o mais comum é que se implique com alguma expressão de invenção recente que só boleiros usam, como “impedimento ajustado” e “marcação alta”.

Não pretendo gastar meu latim para defendê-las. Também prefiro o velho “impedimento milimétrico” e me espanto que o sentido figurado de justo como “apertado, estreito” tenha sido suficiente para justificar um uso tão esquisito do verbo ajustar. Quem ajustou o impedimento, afinal?

Quanto à marcação alta, bom, condená-la com o argumento de que o campo de jogo tem a mesma altura em toda a sua extensão é abusar do apego ao literalismo, confere? Metáforas são usadas o tempo todo para expressar analogias até bem menos evidentes.

No fim das contas, e à parte certos floreios da própria lavra, quase sempre os locutores esportivos são intermediários entre usos que nascem no patoá de jogadores e técnicos e seu espalhamento pela população em geral.

É possível argumentar que nesse papel têm até o mérito de filtrar as bizarrices vocabulares mais tolas, como aqueles “externos desequilibrantes” –que nada mais são do que pontas– apreciados pelo ex-treinador (ufa) do Flamengo. Algumas bobagens não chegam a se criar.

Gosto é gosto, claro, mas o que absolve os modismos futeboleiros é que todo jargão profissional precisa cumprir certos requisitos. Um que não provocasse algum estranhamento no ouvido dos leigos seria um fracasso como jargão.

Aqui eu volto ao primeiro parágrafo. Nem tão recente assim, o que mais tem chamado minha atenção no futebolês contemporâneo não é nenhuma dessas expressões, mas a insistência em transformar certos adjetivos em substantivos.

Posso estar enganado, mas me parece de uso bem raro, fora de um contexto esportivo ou que espelhe influência dele, um conselho como “cuide bem do seu mental”. Entende-se, tudo bem. Mas pouco se usa.

Os dicionários ainda não reconhecem esse mental substantivado, mas talvez seja questão de tempo. A transformação de adjetivos em substantivos é uma constante (olha aí) na língua.

Se adjetivos de origem como o (telefone) celular, o (exame) vestibular e a (via ou estrada) perimetral foram capazes de se lançar em carreira solo com tanta desenvoltura, por que o (aspecto) mental e o (lado) psicológico não poderiam?

Este, aliás, já consta do Houaiss como brasileirismo informal e o seguinte exemplo: “Foi aí que o seu psicológico começou a falhar”. Não duvido que se refira a um centroavante em jejum de gols.

A quem for à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), fica o convite para a mesa que vou dividir nesta sexta (11), às 10h, na Casa Folha, com o colega colunista Marcelo Viana, sobre a divulgação de saberes matemáticos (no caso dele) e linguísticos para públicos mais amplos. Um bate-papo alfanumérico, portanto. Promete.


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