Por que ainda é tão fácil odiar mulheres? – 14/11/2024 – Tati Bernardi

Eu termino o terceiro episódio da excelente série “Disclaimer” (Apple TV+), adaptação da obra de Renée Knight pelo diretor Alfonso Cuarón, com muita raiva da glacial e ególatra Catherine Ravenscroft, interpretada pela espetacular Cate Blanchett.

Na mesma noite me recordo do filme “Tár” (2022), dirigido por Todd Field, no qual a mesma Blanchett dá vida a uma aclamada maestrina e compositora cancelada por seu comportamento abusivo. Apressadamente concluo que, na contramão do movimento Me Too, “Disclaimer” é mais uma produção “corajosa” que expõe o lado sórdido de mulheres dispostas, tal qual um Don Draper, a saírem destruindo tudo e todos em busca de sucesso. Agora eu te pergunto: a gente terminou de ver “Mad Men” odiando ou amando aquele boy lixo que só queria ter recebido mais carinho da mamãe?

Mas voltando a Catherine Ravenscroft (atenção: spoiler), qual foi o tamanho do meu sobressalto quando entendi que eu estava execrando a malfeitora, lasciva e péssima genitora baseada na narração de uma pessoa que não a conhecia?

Em entrevista recente, Blanchett e Cuarón admitiram o mesmo engano ao lerem a obra de Renée Knight. A atriz desabafa que se sentiu envergonhada ao terminar o livro —”Como eu deixei que a verdade me escapasse?”, admitiu—, e o diretor fala sobre sua angústia ao perceber que ignorou sinais para seguir odiando a personagem.

O último episódio da série tem dois momentos memoráveis e bem arquitetados para solapar dos corações mais progressistas a ideia de que resta pouco machismo em nós. O primeiro é quando Catherine coloca um fim em seu casamento, escancarando o indizível a seu então marido, interpretado pelo grande Sacha Baron Cohen: ele preferiu saber que ela foi estuprada por horas a imaginá-la tendo prazer. O segundo, quando o impecável ator Kevin Kline, no papel de um idoso vingativo e psicótico, devolve a Sacha a mesma pergunta que ouviu: “Como é que você não desconfiou?”

Na condição de leitora e espectadora, me pego muitas vezes incomodada com personagens femininas que, em seus anseios insultuosos, nada mais são do que meus fiéis espelhos. Odiei quando Elena Greco, em “A Amiga Genial” (Elena Ferrante), se viu tão apaixonada por Nino que se esqueceu de suas obrigações maternais. Passei mal quando a deprimidíssima Leda, de “A Filha Perdida” (Elena Ferrante, de novo), largou a família para viver sua liberdade profissional e sexual. Em “Paixão Simples”, Annie Ernaux diz que esperar pelo amante dava um sentido para sua vida que nenhum filho havia sido capaz de dar. Quando em “Cenas de um Casamento”, na adaptação de Hagai Levi, a personagem de Jessica Chastain ousa sentir saudade do recém-saído das trevas Oscar Isaac, eu torci muito para que ela sofresse.

Quando uma jovem lança seu primeiro romance, vira colunista deste jornal ou tem a imodéstia de sair dizendo o que pensa em podcasts, mentalmente posso fazer com ela tudo o que já fizeram tantas vezes comigo: de onde saiu essa fulana? Estudou o suficiente para estar aqui? Sou replicante do mesmo machismo que tenta me destruir.

Já ouvi de alguns homens elegantes e sonhadores (e eu sonhando com os descomedidos e realizadores) que eu era má, quebrada e impossível. Acreditei neles e implorei ajuda para analistas, psiquiatras e benzedeiras, na esperança de que eu pudesse ser consertada, colada e, finalmente, me tornasse “boazinha”. Agradeço muitíssimo ao fracasso dos meus tratamentos.


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *