É muito simples: punir artistas e escritores pelos atos dos seus governos é uma forma de barbárie. Disse o mesmo quando o Ocidente, do alto da sua suposta superioridade moral, “cancelou” artistas ou escritores russos depois da invasão da Ucrânia.
É indiferente se o artista “X” ou o escritor “Y” gosta, ou não gosta, de Vladimir Putin. Não é indiferente se falamos de um bom músico, pintor ou escritor.
Minha defesa da autonomia da arte é tão firme que, podendo viajar no tempo, eu defenderia Martin Heidegger, Louis-Ferdinand Céline, Ezra Pound ou Knut Hamsun, apesar de suas simpatias fascistas. O mesmo vale para Jean-Paul Sartre, Pablo Neruda, Bertolt Brecht ou Bernard Shaw, apesar de suas simpatias comunistas.
O problema é que o fanatismo do tempo vai mais longe. Não ataca apenas artistas ou intelectuais conotados com certas ideologias ou regimes, o que já seria discutível. Ataca grupos inteiros só pelo fato de serem russos —ou israelenses.
É esse o espírito de uma carta pública que junta centenas de nomes célebres –Judith Butler, Sally Rooney, Percival Everett (sério, Everett?). É uma carta cínica que esconde o jogo para enganar o auditório.
A ideia não é “boicotar” a cultura israelense por causa da tragédia humanitária em Gaza, mas é “recusar a cumplicidade” com “instituições literárias” ligadas ao Estado judaico ou insuficientemente críticas dele, dizem piamente os autores.
A ideia, sem eufemismos, é contribuir para a marginalização de autores judeus, das suas editoras, dos seus festivais literários. É colocar sobre cada um deles uma estrela amarela, não por aquilo que dizem ou escrevem, mas por aquilo que são.
O que virá a seguir? Fogueiras públicas para os seus livros, na melhor tradição de 1933?
A carta teve resposta. Centenas de autores denunciaram o propósito do documento em nova carta pública –e, lendo os subscritores, encontrei autores judeus e não judeus que, ao longo dos anos, têm sido críticos ferozes da ocupação israelense dos territórios palestinos, da construção de assentamentos na Cisjordânia e da catástrofe humanitária em Gaza.
Falo de nomes como Simon Schama, Adam Gopnik, Elfriede Jelinek ou Simon Sebag Montefiore. Serão eles os próximos a marchar para a fogueira só porque não concordam com a fúria destrutiva dos seus colegas?
Qualquer pessoa dotada de atividade cerebral só pode olhar com horror para os cadáveres e as ruínas de Gaza.
Mas a tentação primária de punir o governo de Benjamin Netanyahu através da censura de escritores judeus e israelenses (imagino que escritores árabes israelenses estão fora de perigo) é uma velha ideia totalitária que dissolve o indivíduo no ódio cego a um grupo inteiro.
Nunca aprendemos nada.
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