Por gerações, fomos ensinados a acreditar que os filhos são um dos nossos legados mais importantes. Eles representam não apenas a continuidade biológica, mas também uma extensão do impacto que os pais poderiam deixar no mundo, mesmo após partirem.
Essa visão consolidou o ideal de um legado perpetuado por meio de dinastias, onde o nome, os valores e a influência familiar permaneciam vivos por gerações. Era uma forma de imortalizar a presença de quem partiu. No entanto, os tempos mudaram, e os filhos biológicos, antes considerados um relevante legado, estão deixando de ocupar esse lugar.
Hoje, os jovens enfrentam desafios muito diferentes de seus pais e avós. A mobilidade geográfica, a competição no mercado de trabalho, as mudanças climáticas e as incertezas globais levam as novas gerações a questionar fortemente a ideia de ter descendentes.
Os filhos, antes vistos como garantias de continuidade e de memória, estão se tornando algo cada vez mais raros, incapazes de sustentar sozinhos o peso de um legado. No Brasil, a taxa de fecundidade de 1,6 filho por mulher está bem abaixo do nível de reposição populacional de 2,1. Isso significa que muitas famílias não terão continuidade em um futuro próximo.
Nesse contexto, é necessário redefinir a maneira como muitos concebem o que é um legado, pois ainda há quem esteja preso a um antiquado modelo que coloca ênfase excessiva no acúmulo material e na continuidade biológica.
Contudo, o legado deve ser encarado como algo mais abrangente. Quando procuramos usar nossos recursos e habilidades para promover o desenvolvimento coletivo, ele deixa de ser uma herança fechada e passa a ser um bem comum com um alcance mais duradouro. Ele transcende os limites de uma única família, gerando impacto positivo em outras vidas ao longo do tempo.
Um legado que beneficie a coletividade é mais difícil de ser apagado porque ele não depende de uma única linha de sucessão, mas do impacto que reverberará em diferentes direções e em várias vidas. É um impacto que se espalha e se multiplica por diferentes pessoas e gerações. E, quando algo toca várias vidas, acaba criando um efeito cascata, transcendendo as fronteiras do tempo e das relações familiares.
Nesse início de novo ano, temos um bom momento para repensar o que significa deixar algo para quando partirmos desse breve sopro chamado vida. O ideal de que os filhos são uma das melhores formas de legado já não faz sentido nos tempos atuais. Em um mundo onde a fecundidade é baixa e a individualidade exaltada, o legado não pode ser encarado como um investimento que depende de uma sucessão de herdeiros.
Construir algo que perdure exigirá olhar além da própria família, pensando no impacto que podemos causar em um contexto mais amplo. Somente assim, partiremos com uma garantia que, nosso legado, seja ele qual for, não desaparecerá rapidamente com o tempo.
Em novembro, passei a escrever semanalmente para o jornal. Neste mês, comemoro quatro anos como colunista da Folha. Sou grato ao jornal pela confiança e a todos os leitores que têm acompanhado essa jornada. Por fim, mas não menos importante, este texto é uma homenagem à música “Tempo Rei?”, composta e interpretada por Gilberto Gil. Feliz Ano-Novo!
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