Para a grande alegria dos leitores entusiastas da literatura autossociobiográfica (a mesma escrita, e de certa forma criada, por Annie Ernaux), o autor francês Édouard Louis vem à Flip neste ano.
Celebridade na França e em vários outros países em que foi traduzido, Édouard ficou conhecido no Brasil pela obra “O Fim de Eddy” (publicada pela Tusquets), na qual narra como sofreu com a precariedade financeira e os maus-tratos em uma zona operária no norte da França, com pouco mais de mil habitantes.
Apesar de a palavra “vingança” aparecer em todos os seus livros, e da indisposição que isso causou tantas vezes entre o autor e sua família, Louis superou os preconceitos e as incivilidades do seu passado ao se tornar um acadêmico e entender profundamente o que levou aquelas pessoas a se comportarem daquela maneira. As dores psíquicas e físicas de uma infância por muitas vezes sufocante e violenta eram o resultado arquitetado de um governo e de uma elite que precisavam esmagá-los.
Aos poucos, sua revolta contra os pais foi se transformando no desejo de vingá-los, expondo as mazelas a que foram sujeitados. Ele manteve a palavra “vingança”, manteve a raiva necessária para se tornar um artista, mas entendeu que seus cuidadores só reproduziam a vida terrível que haviam levado até então.
A editora Todavia seguiu publicando o autor aqui no Brasil, e em seus livros subsequentes conhecemos com mais profundidade a vida e a trajetória de seu pai, as renúncias e as carências de sua mãe, a brutalidade que seguiu se repetindo em sua vida mesmo em Paris e os métodos utilizados pelo escritor para que pudesse, com empenho obsessivo, se libertar por completo da pobreza e da ignorância impostas geográfica, social e politicamente a todos os que pertenciam ao seu meio.
Seu próximo livro seria sobre seu irmão “morto pelo álcool aos 38 anos”, mas sua mãe lhe pediu que escrevesse sobre ela outra vez, ao concluir que, desde o livro “Lutas e Metamorfoses de uma Mulher”, sua vida havia mudado totalmente. E ela queria que essa transformação continuasse.
“Monique se Liberta” narra o momento em que Édouard, enquanto fazia uma residência literária em Atenas, recebe um telefonema da mãe em completo desamparo, comunicando estar, pela terceira vez, disposta a abandonar um companheiro alcoólatra, misógino e agressivo: “Não sei por que tenho uma vida de merda assim, por que só conheço homens que me impedem de ser feliz, não mereço sofrer tanto, o que eu fiz de errado?”.
A partir desse telefonema, mesmo à distância, ele se pergunta “quantas mulheres mudariam de vida se tivessem um cheque na mão?” e sente-se obstinado a garantir uma fuga perfeita para ela e a lhe assegurar conforto e atenção nos dias posteriores. O autor cede sua casa em Paris, manda entregar comidas que a mãe nunca havia provado, convoca seus amigos mais íntimos para ajudá-la e, por fim, volta a manter contato com a irmã, com quem estava rompido fazia quase uma década.
Para Louis, não basta morar em uma casa, é preciso achar uma moradia em que se possa viver. A partir dessa conclusão, ele não sossega enquanto não encontra um lugar em que Monique possa ser feliz e, aos 55 anos, recomeçar sua vida.
Ao notar a mãe extasiada no apartamento escolhido por eles, o filho compreende que finalmente foi possível dar isso a ela. E somente foi possível porque ele estudou e escreveu os livros que escreveu. Obras que tantas vezes magoaram Monique, que fizeram com que ela até aparecesse em uma de suas apresentações literárias para tirar satisfações em público. Mas foi graças a essas obras que ele pôde dar uma nova vida à mãe. E ela pôde olhar em seus olhos e dizer que o amava.
Não posso deixar de repetir que seus livros –todos eles– me causam um arrebatamento que poucas vezes senti como leitora. Mais do que um autor enorme, Édouard é a pessoa que me ensinou que escrevemos sobre nossos familiares não pelo prazer de expô-los, mas porque é preciso que eles existam, é preciso que suas histórias sejam contadas, é preciso vingá-los e é preciso dar conta do quanto os amamos, mesmo que muitas vezes não tenhamos conseguido dizer.
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