“Eu cheguei aqui três horas da madrugada, isso não pode acontecer! Deixaram o moço entrar e as crianças ficaram! Que Xou da Xuxa é esse?! Que Xou da Xuxa é esse?!”
Nunca subestime o poder de um meme. A revolta da menina Patricia Veloso Martins na porta de uma gravação do Xou da Xuxa segue bombando nas redes e se desdobrando em mil variantes. Só no último domingo (22), ri umas três vezes com uma versão dublada em inglês (“What kind of Xuxa Show is this?!”) e outra em francês (C’est quoi ce concert de Xuxá?!”).
A frase de revolta de uma pequena criança com potencial de grevista do ABC resume à perfeição o conteúdo da série “Pra Sempre Paquitas”, no Globoplay: que Xou da Xuxa é esse que nos fez sonhar a infância inteira, e que hoje descobrimos ter sido um pesadelo para quem trabalhou nele?
Nos anos 80 e 90, nove entre dez meninas sonhavam em ser Paquitas, as assistentes de palco e dançarinas da Xuxa. A série confirma o que já desconfiávamos: sob a mão de ferro de Marlene Mattos, as meninas encararam uma rotina de shows de cinco meses seguidos, tendo só um fim de semana de folga; sofriam para conciliar trabalhos e estudos, indo dormir às 3h da manhã depois de um show e acordando às 7h para ir ao colégio; e, ainda menores de idade, sofriam uma intensa pressão para manter o peso que Marlene idealizava para elas. Ameaças de demissão se “continuassem gordas”.
Além de todo o assédio moral da produtora, com direito a xingamentos pesados, as Paquitas, hoje na casa dos 40 e 50 anos, relatam ao menos uma situação próxima do assédio sexual, quando Marlene exigiu que todas tirassem a roupa, sob o argumento de verificar o peso delas.
Rainha da mea-culpa
A série do Globoplay é um resumo cruel do que é o ambiente tóxico da televisão, dominado por egos gigantes e relações tóxicas. As meninas que foram trabalhar com Xuxa eram menores de idade, obcecadas por um sonho que gestavam na sala de casa, em frente à TV. Um dos grandes méritos do projeto é destrinchar a demissão em massa que todas as paquitas sofreram em 1996.
Lideradas por Ana Paula Guimarães, a Catuxa, elas tinham o sonho de montar um espetáculo de teatro e foram manipuladas por João Henrique Schiller, que fazia parte da equipe de produção do Xou.
Chamado para dirigir a peça, ele gravou todo o desabafo das Paquitas e publicou um livro mesmo sem a autorização dos pais. As confissões enfureceram Marlene que, como de hábito, fez a cabeça de Xuxa, tratando-as como inimigas e traidoras.
O reencontro de Xuxa com essas Paquitas da primeira geração é o ponto alto da série. Xuxa passa todo esse encontro e os cinco episódios em modo mea culpa, pedindo perdão por tudo: ter se deixado manipular por Marlene, não ter dado o acolhimento devido às meninas, ter pensado mais em si do que nelas quando o Xou terminou.
A atriz Bárbara Borges, paquita da Nova Geração, foi às redes reclamar que só aparecem no último episódio e também pedir um encontro de acerto de contas com a rainha –será que temos assunto para uma terceira temporada do UEX– o Universo Expandido Xuxa?
“Pra Sempre Paquitas” tem o mérito de mostrar o quanto a TV brasileira já evoluiu em muitos aspectos, da preocupação com a diversidade e a representatividade à condenação de assédios morais e sexuais.
Só tem um grande problema: toda a condenação é reservada a Marlene Mattos, que não quis dar depoimento, ficando assim como a vilã incontestável da história toda. Nada se fala sobre a responsabilidade da Globo sobre o que ocorria no Xou da Xuxa.
Se Marlene concentrou tanto poder, é porque entregava um bom produto e, acima de tudo, boa audiência. Por que não ouvir, por exemplo, Boni, o todo-poderoso da emissora na época, que aparece na série da Xuxa se orgulhando da sua criação? Afinal, por trás da mulher má, havia homens ambiciosos igualmente responsáveis por definir que Xou da Xuxa é esse.
“Pra Sempre Paquitas”
Série em cinco episódios no Globoplay