Dias atrás, num almoço entre amigos, alguém disse que Hugh Grant era o vilão do filme “Herege”. E que, no filme, o nosso Hugo torturava duas garotas mórmons que o tentavam converter. “Quem nunca pensou nisso que atire a primeira pedra!”, disse eu, levantando o meu copo. Houve risos —poucos— e olhares de horror —muitos.
Tentei defender-me: escrever, como dizia o velho Ernest Hemingway, é a coisa mais fácil do mundo. Basta sentar em frente à máquina e sangrar. Então imagine o que é estar nessa sangria e alguém tocar à porta para nos salvar a alma. Já aconteceu: aquele momento em que a ideia, finalmente clara e distinta, está pronta para ser escrita. E o som da campainha dissolve tudo no ar.
Mas não é apenas isso. É a própria ideia de conversão, sobretudo quando forçada. Não interessa se falamos de religião, política ou “lifestyle”. Sinto um desconforto físico quando um benemérito entra na minha vida, na nossa cabeça e nos nossos hábitos sem ter sido convidado ou procurado. E, ultrapassando os limites, impinge a sua mercadoria.
As sociedades contemporâneas estão dominadas por esses beneméritos. Governos, especialistas, ideólogos ou cartomantes que determinam como devemos viver, trabalhar, morrer. O que devemos pensar, condenar, dizer, censurar. E comer, e beber, e sonhar.
Nosso mundo sofre de “incontinência judicativa”, como dizia o filósofo português Paulo Tunhas, que contava uma história a respeito. Um dia, um mendigo pediu-lhe um cigarro. Paulo acedeu. O mendigo, saboreando o fumo, sentenciou: “O senhor não deveria fumar. Faz mal à saúde”.
Escuso de dizer que, depois do almoço, fui ver o filme para expiar minhas falhas. Devo um pedido de desculpas aos comensais. O problema não é o nosso Hugo ser vilão. É ele cultivar o mesmo tipo de proselitismo das suas vítimas, embora com uma força literalmente assassina. Atenção ao spoiler: houve um tempo em que o sr. Reed —nome do personagem— levava a sério a religião.
Mas o estudo minucioso dos textos sacros o levou a concluir que os textos não eram sacros, mas apenas repetições de repetições de repetições —velhas histórias ou mitos que começaram nos alvores da humanidade e que foram sendo aproveitados por diferentes igrejas ou seitas.
Munido dessa nova certeza —a religião é uma fraude, um plágio, um mero instrumento de controle—, o cavalheiro não se dedicou à jardinagem para viver seus dias sem incomodar o parceiro.
Não. Ele preferiu ser um missionário contra os missionários, espalhando a nova palavra com a ferocidade de uma besta desencantada. Como explicar isso?
O psicanalista Adam Phillips, num dos seus melhores ensaios (“On Wanting to Change”, da Penguin), já tinha analisado o fenômeno. A conversão, para cabeças que não toleram a dúvida, é sempre uma forma de substituição.
Ou, nas palavras de Phillips, a conversão pretende sustentar aquilo que procura substituir.
Não interessa se essa conversão é uma passagem da crença absoluta para a descrença absoluta, como acontece com o sr. Reed.
Ou, adaptando a dinâmica para o universo político, não interessa se falamos de um comunista que vira reacionário (muito comum) ou de um reacionário que vira comunista (raríssimo; nunca vi).
O ponto fundamental é a natureza totalitária da certeza —e totalitária porque deseja submeter todos ao mesmo dogma. As pessoas normais podem acreditar em Deus, não acreditar ou até não saber se acreditam ou não. Um crente, um ateu ou um agnóstico não pretendem que o mundo inteiro valide as suas opiniões.
Um crente militante ou um descrente militante vai além: ele não se limita a viver as suas certezas e dúvidas no “fundo insubornável do ser”. Como escreve Adam Phillips, converter o descrente é o único antídoto para neutralizar a réstia de dúvida que ainda pode existir no próprio crente.
O sr. Reed não se conforma com as suas alegadas descobertas teológicas. Não escreve um livro sobre o assunto, não abre uma escola, não se dedica à paródia ou ao humor. Por outras palavras, não é a conversação que lhe interessa, até porque conversar é uma aventura sem um fim determinado. Há sempre a possibilidade de sermos surpreendidos por um caminho, uma paisagem e até uma companhia inesperados.
A conversão é o contrário de uma conversação, escreve Adam Phillips. Conversando damos ao outro a liberdade. A vontade de o converter é uma vontade de domínio —e, como no filme, de destruição. Durante a Guerra Civil Norte-Americana, ao definir o seu conceito de democracia, Abraham Lincoln escreveu: “Tal como não quero ser escravo, também não quero ser senhor de escravos”.
É a minha prece favorita.
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