Todo escritor é um mentiroso? – 13/10/2024 – Becky S. Korich

“Escritores são mentirosos, minha querida, você certamente já sabe disso? E, no entanto, as coisas não precisam ter acontecido para serem verdadeiras. Contos e sonhos são as verdades-sombra que perdurarão quando meros fatos forem pó e cinzas, e esquecidos.” (Neil Gaiman, The Sandman)

Toda arte faz as pessoas encontrarem sentido onde a vida muitas vezes não alcança. A arte inventa as suas verdades, que cada um recebe individualmente conforme lhe toca: é, portanto, uma multiplicadora de sensações, sustentada por uma “mentira”, não como uma distorção, mas como um recurso que amplifica a experiência estética, criando novas camadas de interpretações. A mentira, nesse contexto, não nega a verdade, mas a expande.

É nisso que se baseia a produção literária: na invenção, na imaginação, no flanar, na liberdade de não ser. É a mentira que nos salva.

A literatura, como a maioria das artes, deve ser dissidente, deve ser interrogativa da realidade e do pensamento, não afirmativa. Não é a sua tarefa servir à realidade, obedecer a padrões ou cumprir um propósito moral. Sua maior missão é proporcionar prazer e revelar beleza, é reinterpretar a vida sob uma lente imaginativa, embelezando a realidade. Sua maior beleza é criar realidades alternativas (mentiras) a partir de pedaços de verdades, sem nunca se desapegar da emoção. É isso que empresta a autenticidade que torna tudo tão verdadeiro para o leitor: a emoção revela mais verdade do que a própria verdade.

O leitor quer, espera, precisa mergulhar no extraordinário, porque o ordinário é enganador, é tedioso, é raso.

Em última análise, todos nós somos romancistas de nós mesmos, construtores das nossas próprias narrativas. Entretanto, nosso domínio sobre a realidade é fatalmente parcial, imperfeito e subjetivo, ele nunca poderá ser fiel.

Para os leitores não é determinante saber até que ponto uma narrativa livre é autobiográfica, ou autoficção, ou se baseada em fatos reais.

A boa obra literária nos convida a saborear a leitura, transformando a leitura em uma jornada íntima e a mergulhar dentro dos personagens, não procurando a relação entre eles e o autor, mas sim entre eles e o próprio leitor.

Somos hoje cercados de forças que nos fazem perder a sensibilidade para discernir o que liberta do que aprisiona.

Ler é o remédio para escapar da nossa visão tediosa e limitada do mundo. É a forma de nos envolvermos em uma relação imaginativa com o escritor e pegar emprestado o seu ponto de vista narrativo, para criar as nossas próprias histórias.

E por isso que leio, e é exatamente por isso que escrevo todos os dias. E minto, minto sem medo, invento versões minhas, sem esbarrar nos limites da honestidade. Assim consigo chegar a algumas verdades.


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