Você faz malas, eu faço neuroses – 10/10/2024 – Tati Bernardi

Uma semana antes de qualquer viagem, minha mente já começa com sua organização impecável, experiente e dedicada. Dentro da “mala”, dispostos com maestria e cuidado para que todo o espaço fique bem ocupado, empilho medos, fobias, ansiedades, manias e angústias.

Viajar é sempre uma hecatombe dentro de mim. Se não aplaco a obsessão do meu inconsciente com ajuda farmacológica, entro em uma espiral de pensamentos horripilantes com cenas em que meus pais sofrem acidentes, minha filha se perde, minha cachorra se afoga, um vazamento de gás explode minha casa e meu trabalho é aniquilado completamente pelo fogo. E a verdade é que estou pegando leve com o leitor, omitindo as partes em que vejo sangue e missas.

Se você ler meia página de Freud vai concluir que meu sofrimento é extremamente arrogante. Por que o mundo precisaria tanto de mim a ponto de se desintegrar sem a minha presença? Acontece que, para a minha fobia de viagem, a pecha da presunção não cola dessa forma maniqueísta. Na real, o que sinto é que vou me desintegrar longe dos papéis que ocupo. Eu não sei direito como ser um corpo para além das narrativas profissionais e familiares que me costuram. Não sei como ser um corpo para fora das bordas do meu quarto, da minha cama e do meu banheiro. Meu corpo solto no mundo me apavora demais porque não o conheço –e nem sei se gosto mesmo dele.

Fico tão tensa e apavorada que meu estômago (sobretudo o intestino) entende que precisa adoecer para que eu desista dessa aventura inconsequente de ir para o Irã, quando na verdade estou indo para uma praia a poucas horas de casa.

O auge das minhas crises de pânico foi nos primeiros anos em que trabalhei na Rede Globo. Eu fazia pelo menos umas três pontes aéreas por mês e em todas me sentia muito mal. Lembro de fechar os olhos em um desses voos, o corpo inteiro tremendo e suando frio, e combinar comigo mesma: “Acabei de completar 30 anos, ainda preciso aturar muita coisa, ganhar dinheiro, fazer um nome, mas lá pelos 40 e poucos eu juro que vou ficar mais em casa. Eu juro”.

Bem, cheguei aos 40 e muitos, e o que mudou? Praticamente nada: ainda preciso aturar muita coisa, ganhar dinheiro e fazer um nome. A diferença é que agora o corpo dói muito mais e, por conta da artrose, solto uns gemidos altos quando preciso pegar uma mala na esteira do aeroporto.

De uns tempos para cá, algo estranhíssimo e não planejado aconteceu com a minha carreira profissional: passei a ser convidada para dar palestras o tempo todo. E eu odeio. Odeio. O estresse pelo qual meu corpo passa por ter de não somente viajar, mas se submeter a um palco, é das piores coisas que já vivi. Contudo, amo. Adoro. Depois de vencidas as etapas, ou mesmo enquanto estou no clímax delas, tenho vontade de dançar e cantar. É muito louco ser louco. Topo quase todos os convites porque, por mais fóbica que eu seja, consigo ser ainda mais cara de pau, ambiciosa e exibicionista.

Viajo daqui a alguns dias e comentei com meu analista que há uma semana já comecei a fazer minha lista de motivos para desistir. Desmarcar ou desistir virou minha performance “adulta blasé” para disfarçar motivos mais complexos. Claro que viagens muito longas, hotéis desconfortáveis ou companhias pouco interessantes são desculpas absolutamente válidas (e eu as uso de maneira compulsiva) para que eu não renuncie ao meu colchão. Mas a verdade é que eu não suporto o estado mental e físico em que fico quando preciso mover meu corpo para fora da minha cadeira Aeron grafite. Não suporto, mas vou. Quase sempre vou. E de repente, a despeito da minha cabeça, eu me sinto realmente feliz.

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