Nunca, jamais, para mim, uma viagem, um passeio, um encontro, uma reunião fora da firma, um jantar se resumem a ser exatamente o que são para um “serumano” convencional, basicamente botar a beca, passar glostora no cabelo e ir.
O meu “ir” exige de mim um bocado de desgastes anteriores que, de modo geral, passam ao largo das preocupações de outros viventes que não precisam de cadeira de rodas.
Haverá rampa de acesso? Banheiro onde eu caiba? Espaço de manobra? Como vão me olhar? Onde eu vou parar a kombi? A calçada até lá me derrubará no chão?
As questões se multiplicam à medida que a ousadia da pessoa com deficiência em viver aumenta e ela passa a desafiar a falta de consciência inclusiva mundo afora, bem longe dos botecos da esquina, ou à medida que o desafio da existência implique soluções que vão além do básico, como uma rampa, um aplicativo de comunicação.
Minha amiga Alice, de onze anos, é do grupo que requer o movimento da aldeia para ser menina como qualquer outra. Com restritos movimentos de todo o corpo, usando tecnologia para interagir e falar e com necessidade de apoio de forma integral, ela quis ser “atrevida” ao senso comum: participar de uma excursão com a turma de escola. Deveria ser só mais um capítulo de sua vida escolar, mas não é, não foi.
Antes do evento, a Mariana, mãe da garotinha, teve de fazer o universo girar. Programar quem daria cada um dos passos por Alice, como cuidar da alimentação, da movimentação e da busca por felicidade no ambiente totalmente novo do aconchego de casa.
Se a experiência exige de pais com filhos típicos, ela consome, esgota e desassossega sem trégua a rotina de famílias atípicas.
Sabida, Mariana jogou luz a esse aporrinhamento constante, nomeando, tirando da abstração e trazendo para o português um conceito que já se espalha no mundo acadêmico —cunhado, em inglês, pela pesquisadora Annika Konrad—, a fadiga de acesso.
Trata-se der um cansaço emocional, intelectual e físico carregado permanentemente por pessoas adornadas por diferenças físicas, sensoriais e intelectuais e por quem as rodeiam.
A sensação é tão séria e presente que, muitas vezes, ela tem o poder de congelar ações por receio de se expor à dor do preconceito, à dor do “aqui você não cabe”, “aqui você não pode”, “aqui não vai rolar para você”.
Alice, eu e uma multidão de gente diferente e nossos agregados somos fadigados pelo ambiente, pelas pessoas, pelos olhares, pelos excessos, pelas ausências, pelos estereótipos, pelos medos, pelo capacitismo, pela anulação de nossas maneiras e manifestações de ser e de estar.
Atenuar esse efeito, esse desgaste depende muito de uma aguardada era em que o coletivo —e também os direitos, as estruturas, as culturas— se comprometa em assumir mais, e com naturalidade e normalidade, que alguns vão precisar de mais apoio na caminhada, vão carecer de mais tato em suas superfícies, de mais claridade em seus becos de existir.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.